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Explor(ar): quando a música abre caminhos dentro de nós

  Hoje à noite, no CCBNB Fortaleza , vivi uma daquelas experiências que me lembram por que a arte ainda é o que nos salva da rotina: o show “Explor(ar)” , da cantora e compositora Luh Lívia . Confesso — não a conhecia, nem tampouco a banda Siavesh , que participou da apresentação. Fui movido pela curiosidade, pelo desejo de descobrir algo novo. E encontrei mais do que esperava: encontrei um som que parecia costurar mundos . Desde os primeiros acordes, percebi que “Explor(ar)” não era apenas o título do show — era um chamado à travessia . Luh Lívia apareceu em cena com uma presença suave e intensa ao mesmo tempo, guiando o público por um território sonoro que misturava rock, MPB, nuances orquestrais e atmosferas eletrônicas . Tudo parecia dialogar: o baixo pulsante, os sintetizadores flutuando, as guitarras criando textura, a voz dela — firme, mas com uma vulnerabilidade bonita, como quem canta e escuta ao mesmo tempo.   A alquimia dos encontros O show ganhou ainda m...

Os anos novos: o tempo em que ainda somos

  Assistir à série “Os anos novos” , da MUBI, foi como folhear um álbum de lembranças que ainda não terminei de viver. Há algo profundamente humano na forma como a série trata o tempo: não o tempo das datas, mas o tempo da alma — aquele que se mede em perdas, silêncios e reinvenções. O que mais me tocou foi a delicadeza com que os episódios capturam o gesto mínimo : uma respiração demorada, uma luz de fim de tarde, o olhar de quem tenta compreender o que restou de si. “Os anos novos” não é uma série para quem busca enredo linear ou ritmo acelerado. Ela pede entrega . Pede que o espectador desacelere, que aceite o tempo da escuta, o tempo do vazio, o tempo da espera.   O tempo que o capitalismo não quer que a gente sinta Enquanto assistia, pensei muito em como vivemos hoje — sempre correndo, sempre produzindo, sempre fingindo que o passado foi superado. A série me lembrou de algo essencial: a modernidade transformou o tempo em mercadoria , e nós, em consumidores de ins...

Descer para compreender: o que aprendi lendo A Descida, de Jesmyn Ward

  Ler A Descida foi, para mim, mais do que acompanhar uma história — foi como entrar num mundo que sangra e ainda assim pulsa beleza . Jesmyn Ward escreve como quem invoca espíritos: sua prosa é densa, lírica, cortante. Eu me vi descendo com ela — descendo às entranhas da dor, da pobreza, do racismo, mas também às profundezas da coragem humana. O livro, ambientado no Sul dos Estados Unidos, fala de uma mulher negra que perde quase tudo , mas insiste em caminhar. A cada página, a autora nos conduz a um território emocional que, de tão real, parece arder na pele: o luto, o desamparo, o peso de um sistema que nega futuro a quem já nasceu com o corpo marcado pela desigualdade. E, no entanto, A Descida não é um livro sobre derrota — é sobre resistência . Ward faz da dor um caminho de retorno à vida. Há uma força ancestral na forma como ela narra o sofrimento: uma consciência de que quem desce, às vezes, desce para reencontrar o chão onde a esperança foi enterrada .   O S...

Educação interrompida: o espelho quebrado do Ceará

  Ler os novos dados do IBGE sobre a educação no Ceará me deixou com um nó na garganta. Mais da metade dos cearenses com mais de 25 anos não concluiu o ensino básico . Mais da metade — essa frase sozinha já diz tudo. Ela carrega, silenciosa, a história de uma multidão que teve de escolher entre estudar e sobreviver. Como cearense não consigo ler esses números como meras estatísticas. Cada porcentagem me parece um rosto conhecido: a colega que largou os estudos pra cuidar dos irmãos, o vizinho que começou a trabalhar ainda adolescente, o jovem que não viu mais sentido na escola. Por trás de cada dado há uma vida interrompida — uma história que o Estado não sustentou até o fim.   Quando a economia cala a escola O professor Eneas Arrais Neto , da UFC, está certo quando diz que esses índices refletem mais a economia do que a educação. Entre 2014 e 2022, o país viveu recessão, desemprego, cortes e desesperança. Nos lares pobres, cada braço passou a ser necessário para...

A contratransferência como bússola clínica

  Há dias em que entro na sala de atendimento e sinto que algo me atravessa antes mesmo de o paciente falar. Um incômodo, uma ternura, uma irritação sutil — sinais que, com o tempo, aprendi a não rejeitar. São pequenos movimentos internos que anunciam o encontro entre dois mundos psíquicos. Hoje sei que ali, nesse território entre o outro e eu, a contratransferência é minha bússola . Quando comecei a clinicar, temia essas emoções. Acreditava que o bom analista era o neutro, o que escuta sem se deixar afetar. Mas quanto mais vivi o ofício, mais entendi que a neutralidade absoluta é uma ilusão. A escuta verdadeira passa pelo corpo, pela emoção, pelo inconsciente do analista. E é justamente isso que Winnicott, Bion e outros nos ensinam: o analista sente não por fraqueza , mas porque é nesse sentir que reside o instrumento do trabalho. A contratransferência, como aprendi na prática, é uma bússola que aponta para o que o paciente não consegue dizer . Aquilo que ele recalou, que n...

O silêncio que repete e a repetição que silencia

  Há algo de profundamente humano — e ao mesmo tempo trágico — na forma como repetimos. Eu vejo isso em mim, nos outros, nos pacientes, nos vínculos. A repetição parece, muitas vezes, um modo de permanecer vivo dentro do que não conseguimos elaborar. Ler Freud, depois Ferenczi e Winnicott, e depois observar a vida — nas ruas, nas sessões, nas conversas — me fez perceber que repetir é uma tentativa falha de lembrar sem sofrer . Quando não conseguimos transformar a dor em palavra, o corpo fala por nós. Quando não conseguimos simbolizar o trauma, o gesto retorna — igual, insistente, previsível. E é nesse ponto que a repetição se torna fuga : não é apenas reviver o passado, é tentativa de não senti-lo novamente . Já o silêncio — esse outro modo de repetição — é o eco do que não pôde ser dito. É a defesa mais sutil e mais dolorosa. No silêncio, o sujeito tenta manter o controle, tenta evitar o colapso, tenta não tocar o buraco que ainda sangra. Mas, paradoxalmente, o silêncio...

O vazio e o gesto: o que aprendi com Deprivação e Delinquência, de Winnicott

  Ler Deprivação e Delinquência , de Donald Winnicott , foi como atravessar uma fronteira invisível entre o abandono e o desejo de existir. É um livro que toca lugares desconfortáveis da alma — a infância ferida, a falta de amor, o grito não ouvido. E o que mais me impressionou foi perceber como Winnicott consegue enxergar esperança onde o mundo só vê ameaça . Ele fala de crianças e adolescentes que a sociedade chama de “problemáticos”, “perigosos”, “perdidos”. Mas, para ele, a delinquência não é um defeito moral — é um pedido de ajuda . O roubo, a destruição, o ato agressivo são, na verdade, tentativas desesperadas de chamar o mundo de volta : “olhem pra mim, eu existo, eu ainda posso ser amado”. A delinquência é, nas palavras de Winnicott, o gesto de quem não foi suficientemente sustentado .   Vinheta 1 – O menino que roubava relógios Lembro de um menino, a quem chamarei de Lucas , levado ao atendimento por furtar relógios de colegas na escola. O olhar dele mistura...