Fomos abandonados à própria sorte: a condução trágica do Estado brasileiro na pandemia

 

Nunca vou esquecer o silêncio.
Aquele silêncio das ruas vazias, das UTIs lotadas, das covas abertas em série. Um silêncio que não era paz — era abandono. E nesse silêncio, ficou claro o que muitos de nós já sabíamos, mas ainda recusávamos a ver: o Estado brasileiro falhou conosco.

Falo como cidadão, como alguém que perdeu amigos, familiares(meu pai) e certezas. Não foi só um vírus que matou mais de 700 mil brasileiros — foi a irresponsabilidade, o negacionismo e o desmonte deliberado das estruturas públicas de cuidado.

Enquanto os números subiam, o governo fazia piada. Enquanto profissionais de saúde adoeciam de exaustão, o presidente promovia aglomerações. Enquanto os cientistas alertavam, os gestores hesitavam — ou pior: mentiam.

 

O negacionismo institucionalizado

Ver o chefe de Estado brasileiro desencorajar o uso de máscaras, sabotar vacinas, desacreditar médicos e defender “tratamentos precoces” sem evidência científica foi, para mim, um dos capítulos mais sombrios da nossa história contemporânea.
Não se tratou apenas de erro — tratou-se de crime.
Crime contra a saúde pública, contra a memória das vítimas, contra a inteligência coletiva.

A condução da pandemia, sob o governo Bolsonaro, foi marcada por um projeto de desinformação.
A CPI da Covid revelou documentos, e-mails ignorados, ofertas de vacinas rejeitadas, negociatas com intermediários e prioridades invertidas. Esses crimes foram ignorados no processo que está sendo julgado pelo STF.Enquanto países vacinavam em massa, o Brasil discutia cloroquina.

 

A necropolítica em ação

A pandemia escancarou o conceito de necropolítica, proposto por Achille Mbembe: a escolha de quem vive e quem morre, não por fatalidade, mas por decisão política.
No Brasil, morreram mais os pobres, os negros, os periféricos.
Faltou oxigênio em Manaus, não por acaso.
Faltou leito em comunidades, não por acaso.
E sobrou arrogância em Brasília.

Como não se revoltar ao ver o sistema de saúde ser desmontado em plena crise sanitária? Como aceitar que profissionais da saúde passaram meses sem EPIs adequados enquanto militares ocupavam cargos no Ministério da Saúde?
Ali, percebi com clareza que o Brasil não era apenas um país desigual — era um país onde a vida do outro vale menos quando não serve ao projeto de poder.

 

O SUS resistiu — apesar do governo

Se houve um fio de dignidade nesse caos, ele se chama Sistema Único de Saúde.
Mesmo enfraquecido, desfinanciado, sabotado, o SUS foi linha de frente.
Foram os profissionais da saúde pública que vacinaram, atenderam, escutaram, enterraram os seus e voltaram para os plantões.

O Brasil só não colapsou completamente porque havia uma rede construída com décadas de luta social.
Mas essa rede sangrou.
E ainda sangra.

 

As marcas do abandono

Hoje, carrego em mim uma mistura estranha de tristeza e indignação.
Não apenas pelas vidas perdidas, mas pela banalização da dor, pelo uso político do sofrimento, pela tentativa constante de apagar a memória do que vivemos.

Não teremos justiça enquanto os responsáveis não forem responsabilizados.
Não teremos cura enquanto o negacionismo continuar a ser a linguagem do poder.
E não teremos reconstrução sem investimentos em ciência, saúde pública, educação e verdade.

 

Conclusão: lembrar é resistir

Escrevo este texto como um ato de memória.
Porque querem que a gente esqueça.
Querem reescrever a história, minimizar as mortes, tratar o horror como erro de percurso.

Mas eu me recuso a esquecer.

A pandemia nos tirou muito — mas também nos ensinou que a indiferença de um governo pode matar tanto quanto um vírus.
E que a reconstrução do Brasil só será possível quando entendermos que cuidar da vida é o centro da política.
Não a morte.

 

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