“Se nada é escolha, o que ainda somos?”Resenha crítica de Determinados – A ciência da vida sem livre-arbítrio, de Robert M. Sapolsky

 

Fechei o livro Determinados com uma estranha mistura de vertigem e alívio. Vertigem, porque Robert Sapolsky me desfez — sem anestesia — de uma das ideias mais arraigadas da cultura ocidental: a de que somos agentes livres, responsáveis, dotados de escolhas conscientes. Alívio, porque ao negar o livre-arbítrio, ele também me libertou de uma culpa difusa que a modernidade insiste em pendurar em nossos ombros.

Mas não se engane: este livro não é para os fracos de espinha. Sapolsky não está fazendo filosofia de almofada. Ele se lança com base em neurociência, biologia, psicologia evolutiva, sociologia e até criminologia para defender que o comportamento humano é determinado por fatores que escapam ao nosso controle consciente: genes, hormônios, traumas de infância, microbiota, contexto socioeconômico, eventos aleatórios.

E o faz com um rigor impiedoso. Mas também com humor. E isso me desconcertou.

 

 Ciência como desconstrução da culpa

Sapolsky nos conduz por uma trilha árida, mas fascinante. Ele mostra, estudo após estudo, que cada ação humana pode ser rastreada por causas anteriores: ninguém age “por vontade própria” — agimos por causa de variáveis que nem sabíamos que existiam.

Do criminoso que comete um assassinato ao empresário que “escolhe” investir, tudo estaria, de algum modo, programado. Ou melhor: encadeado. Determinado por uma confluência complexa de fatores que nenhum de nós escolheu.

E aí está o golpe mais duro que recebi do livro: o “mérito” vira ilusão. A culpa, injustiça. O sistema penal, vingança. Sapolsky propõe nada menos do que uma reestruturação ética da sociedade baseada no entendimento de que punir alguém por algo que ele “escolheu” fazer é como punir um furacão por destruir uma casa.

 

 Mas então… ninguém é responsável por nada?

Essa foi minha pergunta do início ao fim. E a resposta de Sapolsky, ainda que às vezes escorregadia, é: sim e não.
Sim, no sentido de que não há ação sem causa.
Não, no sentido de que, sabendo disso, temos responsabilidade coletiva de construir uma sociedade que reduza os danos do determinismo social, biológico e psicológico.

O problema não é a ausência de culpa.
O problema é quando, sabendo disso, não fazemos nada para evitar que pessoas nasçam e vivam em contextos onde o sofrimento e a violência são inevitáveis.

 

 O paradoxo do autor

Uma parte do livro que me deixou inquieto foi o paradoxo implícito em toda a obra: se não há livre-arbítrio, por que Sapolsky escreve um livro tentando nos convencer de algo?
Se tudo é determinado, então até sua cruzada anti-livre-arbítrio também o é.
E minha leitura também.
E minha resenha também.
E tudo, tudo, tudo.

A certa altura, pensei: estamos todos numa peça de teatro cujos roteiros já foram escritos — e Sapolsky é só mais um personagem tentando nos dizer que não há roteiro livre.
É brilhante. E é angustiante. E é brilhante por ser angustiante.

 

 Conclusão: entre o fim da liberdade e o começo da compaixão

Determinados é um livro que me desmontou. Ele não oferece conforto — oferece lucidez. E, paradoxalmente, nessa lucidez há um tipo de ternura.

Sapolsky escreve como quem já viu o pior da espécie humana (ele trabalhou com prisioneiros, doentes mentais, vítimas de violência) e ainda assim acredita que, entendendo as raízes do comportamento, poderemos julgar menos e cuidar mais. Não como concessão moral, mas como escolha política (a única que talvez ainda reste).

Terminei com a sensação de que, se tudo está determinado, então o mais humano que podemos fazer é criar contextos onde o sofrimento seja o mínimo necessário — e onde a empatia seja o determinante dominante.

E se isso for só mais um desdobramento químico do meu cérebro pós-leitura?
Tudo bem.
Que seja um bom desdobramento.

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