Atravessando a Névoa: Psicologia e Doenças Neurodegenerativas
Costumo
pensar que algumas perdas são como brumas: silenciosas, lentas, mas
devastadoras. Trabalhando com psicanálise, especialmente em contextos onde o
envelhecimento e as doenças neurodegenerativas estão presentes, tenho aprendido
que há dores que não gritam, mas que sussurram todos os dias – no esquecimento
de uma palavra, na dificuldade de encontrar o caminho de casa, na angústia de
um filho que vê o pai perder-se dentro de si mesmo.
As
doenças neurodegenerativas – como Alzheimer, Parkinson, Esclerose Lateral
Amiotrófica (ELA), Huntington e demências diversas – comprometem, de forma
progressiva, as funções cognitivas, motoras e emocionais. Do ponto de vista
médico, são marcadas pela degeneração lenta e irreversível dos neurônios. Mas do
ponto de vista psicológico, o que se perde não é apenas a memória ou a
capacidade de andar: é o chão simbólico que sustenta o sujeito.
Como psicanalista,
tenho visto que o impacto não recai apenas sobre quem adoece. Famílias inteiras
adoecem juntas. A esposa que precisa trocar as fraldas do marido que outrora a
sustentava; o filho que vira pai do próprio pai; a mãe que, num lampejo de
consciência, chora ao perceber que esqueceu o nome da filha.
A
psicologia oferece não apenas escuta, mas sustentação subjetiva. Os
atendimentos clínicos com esses pacientes – quando ainda é possível – se tornam
encontros delicados, onde o silêncio, o olhar e a presença são mais importantes
do que qualquer interpretação. Trabalhar com neurodegeneração é aceitar o
limite da linguagem e confiar na intersubjetividade, no toque simbólico, na
construção de vínculos onde a memória falha.
A
psicanálise, especialmente a winnicottiana, nos ajuda a pensar o cuidado como
gesto criativo, como sustentação do self em colapso. E a psicologia humanista,
em especial a abordagem centrada na pessoa de Carl Rogers, oferece caminhos de
presença autêntica e escuta empática para o sofrimento existencial que muitas
vezes atravessa esses sujeitos. Já a psicologia positiva, com nomes como Martin
Seligman, propõe intervir no fortalecimento das forças pessoais e dos vínculos
familiares – mesmo diante da perda.
Tive, por
exemplo, uma paciente fictícia chamada Dona Iolanda, 74 anos, diagnosticada com
Alzheimer em estágio inicial. Ela me dizia, entre sorrisos e lágrimas: “Doutor,
estou esquecendo de mim. Será que dá pra lembrar de quem a gente é quando o
mundo nos some dos olhos?” No final das sessões, quase sempre esquecia o que
havíamos conversado. Mas havia algo que ficava: uma sensação de acolhimento, de
existência reconhecida, mesmo na névoa.
No campo
da sociologia, autores como Norbert Elias, com sua obra A solidão dos
moribundos, nos alertam sobre como a sociedade moderna isola a velhice e a
morte. A neurodegeneração, muitas vezes, transforma-se em um exílio do convívio
social e afetivo. E isso, talvez, seja uma das maiores violências: o apagamento
simbólico antes mesmo da morte física.
No
Brasil, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, a expectativa é de que o
número de pessoas com demência triplique até 2050. No Nordeste, e especialmente
no Ceará, o envelhecimento da população avança, mas os serviços públicos de
saúde e acompanhamento psicológico ainda são escassos e mal distribuídos. Há
carência de CAPS específicos para idosos, pouca formação de cuidadores e
ausência de políticas de acolhimento intersetorial que pensem saúde,
assistência e cultura como rede de proteção.
Como
podemos, então, resistir a esse apagamento?
A
resposta não está apenas na ciência ou na medicação. Está no vínculo. Em
reinventar formas de presença. Em considerar as famílias como também pacientes.
Em construir redes comunitárias que acolham a velhice com dignidade. Em
reumanizar a saúde.
Sugestões
de leitura e aprofundamento:
- Oliver Sacks – O Homem
que confundiu sua mulher com um chapéu
- Anne Ancelin Schützenberger
– A memória do corpo
- Viktor Frankl – Em busca
de sentido
- Norbert Elias – A solidão
dos moribundos
- Carl Rogers – Tornar-se
Pessoa
- Bialystok et al. – estudos
sobre linguagem e envelhecimento
- Cuidar da Memória: Guia
prático para famílias – Cartilha do Instituto Alzheimer Brasil
Conclusão
Falar
sobre doenças neurodegenerativas é falar sobre o tempo. O tempo que passa
diferente para quem esquece, para quem cuida, para quem tenta lembrar. É falar
sobre amor em sua forma mais crua: aquela que insiste, mesmo quando o outro não
nos reconhece mais. Como psicanalista e ser humano, sigo aprendendo a estar
presente mesmo diante da ausência – porque, talvez, isso seja tudo o que
podemos oferecer: uma presença que resiste.
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