Cultura ou Cárcere? Um grito em defesa da vida criativa

 

Escrevo este artigo tomado por um misto de indignação e tristeza ao tomar conhecimento do Projeto de Lei 508/2025 apresentado pelo deputado federal Kim Kataguiri, que propõe o redirecionamento de parte dos recursos da Lei Rouanet para a construção de presídios. A ideia, que à primeira vista pode parecer apenas mais uma provocação típica de uma extrema direita moralista e punitivista, na verdade representa um ataque direto à alma do Brasil: sua cultura, sua criatividade, sua capacidade de imaginar outro mundo possível.

Como alguém que vive, sente e defende a cultura brasileira não como adorno, mas como eixo de vida, não posso silenciar diante dessa proposta. A cultura é um dos poucos instrumentos que temos para reelaborar dores, romper invisibilidades, dar voz ao que foi calado e construir pontes num país tão fragmentado. A Lei Rouanet, apesar de críticas e distorções pontuais, tem sido ferramenta essencial para garantir o acesso à produção artística e à memória social em todas as regiões do Brasil, sobretudo nos territórios periféricos.

Quando um parlamentar propõe substituí-la pela construção de presídios, está nos dizendo algo muito profundo sobre sua visão de mundo: que o povo brasileiro não deve ter acesso à arte, à beleza, ao pensamento crítico — mas sim ser disciplinado, vigiado, punido. Em outras palavras, é um projeto que prefere prender corpos a libertar consciências.

A lógica por trás disso está alinhada a uma visão de sociedade onde o controle, o medo e o encarceramento são mais valorizados do que a educação, a arte e o cuidado. Trata-se de uma política da desesperança. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil já possui a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 800 mil pessoas presas — número que só cresce. E nem por isso a violência diminui. Isso porque prender não resolve o que só política pública pode tratar: desigualdade, falta de perspectiva, ausência de acesso à cultura e à educação.

Do ponto de vista sociológico, esse tipo de projeto reforça um Estado penal que se expande sobre os corpos negros, pobres e periféricos, enquanto desmonta políticas sociais e culturais. A cultura passa a ser vista como "supérflua", "elitista", quando, na verdade, é por meio dela que muitas pessoas acessam um primeiro emprego, têm sua autoestima restaurada ou elaboram suas dores subjetivas.

Na psicologia, especialmente nas abordagens humanistas e na psicanálise, sabemos o valor da simbolização, da expressão criativa para a saúde mental. Um país sem arte adoece — emocional e coletivamente. Destruir a cultura é empurrar jovens para o desamparo, para a criminalização e para o encarceramento em massa.

Não é coincidência que o mesmo deputado que apresentou esse PL seja o mesmo que sistematicamente ataca a educação pública, os direitos humanos e as políticas afirmativas. É parte de um projeto autoritário que tenta reduzir a potência criadora do povo brasileiro à mera sobrevivência. E sobreviver, para esses, significa calar, obedecer e não questionar.

A Lei Rouanet precisa, sim, de constante aperfeiçoamento, de maior descentralização, de transparência. Mas extingui-la é uma sentença de morte simbólica e material para milhares de artistas, projetos sociais, bibliotecas comunitárias, espetáculos que nunca chegariam às periferias sem esse incentivo.

Por isso, é urgente que a sociedade civil, os movimentos culturais, os artistas e as instituições democráticas se levantem contra esse retrocesso. Que defendam não só a Lei Rouanet, mas o princípio de que cultura é direito. Que a arte é uma forma de liberdade. Que a educação sensível e estética é um antídoto contra a barbárie.

Entre a cultura e o cárcere, fico com o verso, com a dança, com o tambor, com a palavra. Porque, como já dizia Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.” E esse projeto se alastra agora também sobre a cultura. Mas ainda temos voz. E enquanto ela resistir, resistiremos.

 

Sugestões de leitura:

  • CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Edusp.
  • RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. Companhia das Letras.
  • HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Vozes.
  • MOURA, Eliane Costa. Jangada digital: políticas públicas e cultura. Fundação Perseu Abramo.
  • CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? Brasiliense.

Filmes e documentários:

  • Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes)
  • O som ao redor (Kleber Mendonça Filho)
  • Precisamos falar do assédio (Paula Sacchetta)

Se a arte ainda pulsa neste país, é porque há quem insista em sonhar. E sonhar é o primeiro passo para transformar.

 

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