Nosso mundo adulto e suas raízes na infância: uma travessia íntima e coletiva

 

Faz tempo que compreendi que, por mais que a gente se esforce em separar as fases da vida — infância, adolescência, juventude, idade adulta — elas jamais são capítulos estanques de um livro. São camadas sobrepostas, como sedimentos da alma. Em muitos momentos do meu cotidiano, percebo a criança que fui me espiando pelos cantos, reagindo no silêncio das palavras ou nos impulsos de escolhas impensadas. Esse retorno da infância não é regressão: é estrutura. É sobre isso que quero escrever — como nossa vida adulta é moldada por experiências afetivas, corporais, relacionais e simbólicas da primeira infância.

A psicanálise, especialmente na obra de Melanie Klein, oferece uma contribuição profunda para esse entendimento. Klein nos mostra que já no início da vida estamos tomados por angústias, medos, desejos e vínculos que constituem a matriz de nossa forma de amar, odiar, confiar ou temer. A criança, diz ela, desde muito cedo organiza fantasias inconscientes, busca o seio bom e teme o seio mau — metáforas das primeiras experiências com cuidado e frustração. Essa dicotomia entre o bom e o mau atravessa a constituição do ego e do superego, acompanhando o sujeito por toda a vida.

Ao trabalhar com pacientes em sofrimento psíquico, muitas vezes me pergunto: como compreender esse homem controlador, essa mulher que não se permite errar, esse jovem que teme se vincular? A escuta clínica frequentemente revela que há, por trás dessas defesas adultas, crianças que não foram vistas, ouvidas, acolhidas em suas potências e limites. Crianças que cresceram em ambientes que não promoveram a segurança emocional necessária para se arriscar no mundo.

A psicologia humanista, com autores como Carl Rogers e Abraham Maslow, reforça essa ideia de que o ser humano precisa de condições básicas de aceitação e empatia para se desenvolver de maneira saudável. Uma infância marcada por crítica excessiva, ausência emocional dos pais ou negligência afetiva pode gerar adultos com baixa autoestima, dificuldade de confiar no outro e uma constante busca por validação. A liberdade de ser, de se expressar, de existir — que tanto idealizamos na vida adulta — muitas vezes foi reprimida nos primeiros anos, criando entraves que se manifestam em relações amorosas, trabalho, escolhas de vida.

Já a antropologia, por sua vez, amplia esse olhar para a diversidade dos modos de educar e socializar crianças nas diferentes culturas. Em sociedades indígenas, por exemplo, a infância não é vista como uma etapa isolada ou carente, mas como parte de um fluxo contínuo de aprendizagem e convivência. A criança participa da vida da comunidade, aprende pela imitação e pela vivência, e não pelo isolamento em instituições rígidas. Isso nos leva a refletir sobre como a forma ocidental, moderna, de compreender a infância pode ser responsável por muitos dos sofrimentos contemporâneos: infância escolarizada demais, tempo livre de menos, afeto mediado por telas, pais ausentes por exigência de produtividade.

Nosso modelo de sociedade adoece adultos e crianças ao mesmo tempo. Precisamos construir um ethos que compreenda a infância não como uma fase a ser superada, mas como o solo fecundo a partir do qual todo ser humano cresce — ou murcha. E que reconheça que curar nossos traumas, medos e dores adultas também passa por cuidar dessa criança interior, ferida e silenciada.

Indicações de leitura:

·         Inveja e Gratidão – Melanie Klein

·         Tornar-se Pessoa – Carl Rogers

·         A criança e o seu mundo – Donald Winnicott

·         A alma não tem segredo que o comportamento não revele – Pierre Weil

·         A infância sob controle – Didier Fassin

·         A história da infância – Philippe Ariès

·         O mundo não é uma bola azul – Jaqueline Moll (sobre infância e políticas públicas)

·         Infâncias: ensaios antropológicos – organizado por Miriam Abramovay

Escrever este texto é também um gesto de reconciliação com a minha própria infância. Entender que ela ainda me habita é aceitar que ser adulto não é uma meta final, mas uma travessia contínua. E talvez, só talvez, seja cuidando dessa criança em mim — e nas crianças do mundo — que possamos, enfim, imaginar um futuro menos cruel, mais justo e mais amoroso.

 

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