Resenha crítica sobre o filme Toxic, de Saulé Bliuvaitè
Assisti Toxic com o corpo em alerta e o
coração em suspensão. Foi como entrar em uma sala hermética, cheia de espelhos
estilhaçados, onde cada reflexo não devolvia uma imagem fiel, mas uma sensação
de desconforto, deslocamento e, paradoxalmente, reconhecimento. Saulé Bliuvaitè
cria um filme que não se contenta em contar uma história: ele quer que o
espectador a sinta com a pele, com o estômago.
E foi assim que me vi diante de uma narrativa que desce áspera como areia na
garganta.
Toxic nos
mergulha em uma atmosfera densa, com uma paleta fria e diálogos rarefeitos,
como se as palavras estivessem adoecidas pelo peso de tudo aquilo que não se diz.
E talvez essa seja uma das grandes virtudes (e violências) do filme: ele
retrata com precisão a opressão silenciosa e cumulativa de relações que se
dizem “amorosas” mas são, na verdade, pulsões de controle, possessão e corrosão
psíquica. Não é o grito que incomoda, mas o sussurro venenoso — o gás inodoro
que mata aos poucos.
A protagonista, uma mulher em constante estado
de alerta emocional, vive no limite entre submissão e resistência. Vi nela ecos
de muitas mulheres que conheci — pacientes, amigas, familiares. O tipo de
mulher que aprende a sorrir para não provocar, que hesita antes de discordar,
que interioriza a ideia de que o amor exige sacrifício, mesmo que seja o dela
mesma. E nesse ponto o filme toca fundo em questões fundamentais para o
feminismo contemporâneo e para a psicanálise: como se constrói a subjetividade
dentro de vínculos abusivos? Que tipo de afeto é esse que nos destrói sob o
pretexto de cuidar?
Ao longo do filme, pensei em autores que
estudam a violência invisível. Lembrei de Pierre Bourdieu e sua noção de
“violência simbólica”. Lembrei também de Carol Gilligan e sua crítica à ética
tradicional, que negligencia o mundo emocional das mulheres. Mas sobretudo
pensei em D. W. Winnicott — e sua ideia de um ambiente suficientemente bom. O
ambiente da protagonista não só é insuficiente como é profundamente nocivo. E
quando a casa (metáfora do lar e da psique) se torna tóxica, a fuga pode ser a
única forma de sobrevivência.
O título Toxic
é preciso e direto, como um diagnóstico. Mas o filme não é panfletário — ele é
sensorial. Ele não explica, não dá soluções, não grita bandeiras. Ele deixa o
veneno agir no corpo do espectador, obrigando-nos a revisitar nossas próprias
relações, nossas próprias máscaras. É um filme que, se assistido com
honestidade, exige elaboração posterior — talvez até um pouco de análise.
Indicações
de leitura e conexão teórica:
·
Marie-France
Hirigoyen, com seu clássico Assédio
moral: a violência perversa no cotidiano, ajuda a compreender o tipo de
manipulação emocional que o filme representa.
·
Judith
Butler, especialmente em Quadros de
guerra, nos convida a pensar sobre a precariedade dos corpos e como alguns
são socialmente mais vulneráveis a desaparecerem sob o radar da empatia.
·
E, em um plano mais clínico, Jessica Benjamin em Os laços do amor articula, com rara sensibilidade, as
dimensões de poder, dominação e mutualidade nas relações afetivas.
Conclusão
Toxic me feriu — mas de uma forma
lúcida. Saí da sessão como se tivesse atravessado uma floresta de espinhos:
arranhado, mas grato. Não é um filme fácil. Mas é necessário. Num mundo
saturado de violências visíveis, Toxic
expõe o horror íntimo das relações mal resolvidas, das masculinidades frágeis e
dos silêncios cúmplices. E faz isso com uma beleza formal que nos desconcerta
tanto quanto nos obriga a pensar.
Se há um cinema que nos transforma, mesmo que
nos traga desconforto, Toxic pertence a
ele.
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