Resenha crítica sobre o livro História das Origens da Consciência, de Erich Neumann

 

Ler História das Origens da Consciência, de Erich Neumann, foi como atravessar um rio profundo e espesso, onde a corrente das ideias nos arrasta para zonas obscuras e míticas da mente humana. Logo nas primeiras páginas, percebi que não se tratava apenas de um livro sobre psicologia analítica, mas de uma tentativa ousada de mapear o processo pelo qual a consciência humana se separou do inconsciente — uma narrativa psicológica e simbólica do nascimento do ego e da cultura.

Como discípulo de Jung, Neumann se apropria do arcabouço da psicologia analítica, mas leva o pensamento do mestre a outro nível de elaboração. A base da obra é o mito — especialmente os mitos antigos, como os da criação, do herói e do feminino. Neumann constrói sua teoria a partir da imagem arquetípica da Grande Mãe e da luta do ego para se diferenciar de seu domínio. O herói, nesse contexto, é o símbolo da consciência nascente, que precisa enfrentar monstros interiores, labirintos e deuses arcaicos para poder afirmar-se.

É uma leitura que exige preparo e fôlego. Em muitos momentos, senti como se estivesse lendo não um tratado psicológico, mas uma espécie de cosmogonia da psique. Neumann se vale de materiais mitológicos do Egito, da Grécia, da Mesopotâmia, de culturas africanas e orientais para mostrar que o drama do surgimento do ego é universal — embora nunca seja isento de dor, ruptura e perda. A individuação, para ele, não é um caminho tranquilo: é, ao contrário, marcado pela fragmentação do paraíso original e pela necessidade de enfrentamento com o "pai terrível", o "dragão", a "noite escura".

O que mais me tocou, no entanto, foi o papel atribuído ao feminino na constituição da consciência. Neumann trata da Grande Mãe como a totalidade originária, pré-egoica, fonte de nutrição mas também de aniquilação. O feminino é potência, mistério, força arquetípica ambivalente. E me pergunto o quanto essa leitura ressoa em nossa cultura patriarcal, que muitas vezes teme e reprime o feminino exatamente por enxergá-lo como esse "todo" perigoso que ameaça dissolver a masculinidade egóica.

Do ponto de vista crítico, é possível apontar que Neumann projeta estruturas psicológicas de forma universalizante, sem considerar o suficiente as variações históricas, culturais e sociais das representações do inconsciente. Embora a psicologia analítica tenha esse viés arquetípico, senti falta de uma problematização mais profunda sobre como essas imagens são também construções culturais. Ainda assim, reconheço o rigor e a beleza da arquitetura simbólica do texto.

Há momentos em que o livro beira o delírio metafísico — e é justamente aí que ele se aproxima da mística, de pensadores como Meister Eckhart ou mesmo da filosofia trágica de Nietzsche. A consciência, para Neumann, não é um dado, mas uma conquista arriscada — uma travessia heroica. E isso me emociona. Como analista em formação, sinto que História das Origens da Consciência não oferece respostas práticas para o setting clínico, mas nos prepara para acolher os mitos e os monstros de quem atravessa o inconsciente em busca de si.

Sugestões de leitura complementar:

·         Carl Gustav Jung – O Homem e seus Símbolos, Aion, Psicologia e Alquimia

·         James Hillman – O Código do Ser, Re-Vendo a Psicologia

·         Clarissa Pinkola Estés – Mulheres que Correm com os Lobos

·         Mircea Eliade – O Mito do Eterno Retorno, O Sagrado e o Profano

·         Joseph Campbell – O Herói de Mil Faces

Ler Neumann é se confrontar com o abismo da alma humana — e descobrir que há luz mesmo no ventre escuro da Grande Mãe.

 

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