Sertão Confederado e as Vozes do Ceará Silenciadas

 

Na noite passada, sentado na plateia do CCBNB Fortaleza, assisti à peça Sertão Confederado, do grupo Criar de Teatro e da Cia Prisma de Artes, e confesso: poucas vezes senti o passado me atravessar com tanta presença. Era como se o palco fosse um altar de memória viva — e ali, sob as luzes e os corpos em cena, ardiam feridas antigas e, ao mesmo tempo, ainda pulsantes.

A Confederação do Equador, revolta liberal de 1824, não é apenas um episódio distante nos livros de história. Para nós, nordestinos — e, sobretudo, cearenses —, é também um espelho de nossa luta por autonomia, por liberdade, por um Brasil menos centralista e mais justo.

O espetáculo me tocou porque não apenas dramatiza, mas revive, reatualiza, denuncia. É uma peça sobre sonhos partidos, mas também sobre coragem. E o Ceará esteve — e segue — de corpo inteiro nesse sonho.

Foi impossível não lembrar, ali, das figuras heroicas que ousaram levantar a voz contra a tirania de Dom Pedro I. Como Tristão Gonçalves, o libertador do Ceará, que ousou transformar Sobral na capital de um governo confederado e teve sua vida ceifada com selvageria: morto por populares e depois degolado, seu corpo foi deixado como aviso.

Lembrei de Padre Mororó, figura complexa, corajosa, homem de letras e fé, executado por fuzilamento. Recordei Pereira Filgueiras, o primeiro presidente da província a aderir à Confederação, e dos Alencar do Cariri, família envolvida profundamente com as ideias republicanas e autonomistas. José Martiniano de Alencar, pai do romancista José de Alencar, também tomou parte nas movimentações que exigiam liberdade do jugo imperial.

Foram todos derrotados — e mortos, muitos apagados da história oficial. Mas ali, na peça, eles estavam de novo entre nós. Não como mártires idealizados, mas como homens e mulheres de carne, sangue e utopia.

A arte como trincheira da memória

O que mais me comoveu foi ver como Sertão Confederado constrói uma ponte entre passado e presente. Aquela revolta, embora extinta em pólvora e sangue, ainda ecoa nos corpos da juventude de hoje, nas lutas sociais, na resistência cultural do Nordeste.

Essa peça nos lembra que a história não é feita só nos gabinetes de Brasília, mas também nos sertões, nos becos, nos palcos. E que o Ceará, tantas vezes retratado apenas pelo folclore, tem uma trajetória profundamente revolucionária e crítica — que incomoda porque insiste em existir.

Para não esquecermos

Se a Confederação do Equador é muitas vezes tratada como nota de rodapé, é porque mexe com a fundação do poder imperial no Brasil. Ela nos mostra que o Brasil poderia ter seguido por outro caminho. Um caminho mais democrático, federativo, menos hierárquico. Mas preferiu, desde cedo, o silêncio do pelourinho à escuta do povo.

Em tempos de ressurgência autoritária e desinformação, espetáculos como esse têm a função de reavivar a memória crítica e popular. Eles nos dizem que somos feitos também de rebeliões, de inconformismo, de utopias sufocadas — mas nunca extintas.

Que nunca nos esqueçamos de Tristão, de Mororó, dos Alencar, de Filgueiras, de Martiniano. Que não deixemos a morte deles ser apenas um ponto final. A arte, como mostrou Sertão Confederado, é também continuidade. É também resistência.

Contexto histórico – A Confederação do Equador

A Confederação do Equador foi um movimento de caráter republicano e federalista ocorrido em 1824, com epicentro no Nordeste do Brasil, especialmente nas províncias de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Surgiu como reação à dissolução da Assembleia Constituinte por D. Pedro I e à centralização autoritária do poder imperial.

Inspirada por ideais liberais e iluministas, a revolta defendia:

  • O federalismo como alternativa ao poder central concentrado no Rio de Janeiro;
  • A laicização do Estado, com crítica à união entre Igreja e governo;
  • O fim dos privilégios da monarquia;
  • A autonomia provincial, com maior controle político e econômico das regiões.

Apesar da intensidade e da articulação entre militares, padres, intelectuais e populares, o movimento foi violentamente reprimido em poucos meses. A repressão foi brutal: Frei Caneca, uma das principais lideranças, foi executado por fuzilamento após os carrascos se recusarem a enforcá-lo.

 

 Referências bibliográficas recomendadas

  1. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2006.
    → Um clássico da historiografia brasileira com capítulo sobre os conflitos do início do Império.
  2. PENNA, Lincoln de Abreu. A Confederação do Equador: uma revolução brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
    → Estudo aprofundado do movimento, suas lideranças e contradições.
  3. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das e FERREIRA, Jorge. O Brasil imperial (1808-1889). RJ: Civilização Brasileira.
    → Contextualização da Confederação do Equador dentro da formação do Império.
  4. FREI CANECA. Confissões e Manifestos Políticos. Recife: UFPE, 1984.
    → Escritos do líder revolucionário Frei Caneca, essenciais para compreender o pensamento da época.
  5. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: A formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 1990.
    → Explica o processo de centralização do Império e o antagonismo com os movimentos periféricos.

 

 Sugestão audiovisual complementar

  • Série "Histórias do Brasil" (TV Escola) – Episódio sobre a Confederação do Equador
    Disponível gratuitamente no YouTube ou no site da TV Escola.
  • Podcast História FM – Tema: Confederação do Equador
    Produzido por Icles Rodrigues (Leitura ObrigaHistória), com historiadores especialistas.

 

 Reflexão final

A peça Sertão Confederado, ao trazer para a cena a memória desse levante silenciado, não apenas reencena o passado, mas questiona o presente. Em tempos de ameaças à democracia, e apagamento das vozes periféricas, relembrar a Confederação do Equador é um ato político. É uma maneira de dizer: o Nordeste sempre resistiu. E resiste.

 

Comentários

  1. Respostas
    1. Obrigado pelas palavras fortes, contundentes e precisas. Durante todos os ensaios que tivemos, esse sentimentos expressos em suas palavras nos atravessavam o tempo todo. Ficamos felizes em ver nossos sonhos retratados em seu texto. Forte abraço

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