Vidas em Trânsito: um olhar sobre o tráfico de pessoas no mundo, no Brasil e no Ceará

 

Nos últimos tempos, tenho sido tomado por uma angústia difícil de nomear — uma sensação de que, sob a superfície da vida cotidiana, se escondem violências que preferimos não ver. Uma delas, brutal e silenciosa, é o tráfico de pessoas. Não falo aqui de algo distante, exótico ou cinematográfico. Falo de uma prática real, cotidiana, enraizada nas fissuras da desigualdade, da exploração e da desumanização — uma chaga aberta no mundo e também no Brasil, inclusive no meu Ceará.

O tráfico de pessoas é, talvez, a expressão mais cruel da transformação do ser humano em mercadoria. Mulheres, crianças, adolescentes e até homens adultos são aliciados, enganados, vendidos e usados como objetos de lucro. Para trabalho escravo, exploração sexual, adoção ilegal, tráfico de órgãos. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 25 milhões de pessoas no mundo são vítimas de trabalho forçado, muitas delas traficadas. No Brasil, dados do Ministério dos Direitos Humanos apontam que mais de 90% das vítimas são mulheres e meninas. No Ceará, embora os números oficiais sejam escassos, há registros de casos de aliciamento para exploração sexual na rota turística do litoral, especialmente envolvendo adolescentes.

A sociologia nos ajuda a entender esse fenômeno para além do crime. O tráfico de pessoas é resultado de um sistema estrutural de desigualdades: econômicas, de gênero, étnico-raciais. A lógica capitalista de hipervalorização do lucro, aliada a vulnerabilidades sociais — como a pobreza, a ausência de políticas públicas e a fragilidade institucional — cria o ambiente perfeito para essa barbárie. O tráfico se alimenta da fome, da falta de futuro, do abandono do Estado.

A psicologia nos aponta os traumas profundos causados por essa forma extrema de violência. Mulheres que sobrevivem à exploração sexual relatam, com frequência, dissociações, depressão severa, ideação suicida. Crianças traficadas para trabalho doméstico desenvolvem transtornos de vínculo e muitas vezes sequer conseguem nomear o que viveram como violência. O trauma se instala onde deveria haver afeto, cuidado, direito. E os efeitos do desamparo reverberam por gerações.

Do ponto de vista jurídico, o Brasil avançou. A Lei nº 13.344/2016 tipifica o tráfico de pessoas e prevê mecanismos de proteção. Mas a aplicação da lei ainda é tímida, os serviços de acolhimento são insuficientes, e há uma profunda dificuldade em articular ações entre Justiça, Assistência Social, Saúde e Educação. A impunidade é a regra — e os traficantes seguem agindo com redes transnacionais articuladas e tecnologia de ponta, enquanto o Estado ainda opera com fragilidade.

No Ceará, vejo com preocupação a ausência de políticas intersetoriais robustas. O turismo predatório, a migração de adolescentes em busca de trabalho para centros urbanos e o uso das redes sociais como ferramenta de aliciamento deveriam acender alertas. Mas tudo parece normal. A exploração continua — nas esquinas, nas casas noturnas, nos grupos de mensagens e nos bastidores da política.

É urgente transformar essa realidade. Precisamos falar sobre isso nas escolas, nas igrejas, nos movimentos sociais. Precisamos fortalecer os serviços de acolhimento, capacitar profissionais da saúde, da assistência, da educação, criar campanhas públicas efetivas e, sobretudo, enfrentar o problema na raiz: a desigualdade, a misoginia, o racismo, a homofobia, a pobreza.

Não há dignidade possível enquanto seres humanos forem vendidos, abusados e descartados. Não há democracia verdadeira onde se permite o tráfico de corpos e almas.

No Mundo

  • Segundo o último Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas da UNODC (2023), o tráfico de pessoas atinge praticamente todos os países, seja como origem, trânsito ou destino.
  • Cerca de 40 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado ou casamento forçado, segundo estimativas da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e da Walk Free Foundation.
  • Aproximadamente 72% das vítimas são mulheres e meninas.
  • Tráfico para exploração sexual ainda é a forma mais comum no mundo (50%), seguido por trabalho forçado (38%).
  • As crianças representam cerca de 25% das vítimas identificadas globalmente.

 

No Brasil

  • Segundo o Observatório do Tráfico de Pessoas (MDHC), entre 2017 e 2023 foram registrados 1.811 casos de tráfico de pessoas no país, com subnotificação acentuada.
  • As principais formas são:
    • Trabalho escravo e servidão por dívida (especialmente em áreas rurais e na construção civil).
    • Exploração sexual de mulheres e meninas, especialmente em regiões de fronteira e grandes eventos.
    • Tráfico para fins de adoção ilegal ou retirada de órgãos (casos raros, mas documentados).
  • A maioria das vítimas são mulheres negras, com baixa escolaridade e oriundas de regiões periféricas ou rurais.
  • As rotas mais conhecidas incluem os estados do Amazonas, Roraima, Acre, Mato Grosso, Goiás, Ceará e São Paulo.

 

 No Ceará

  • Segundo dados da Superintendência Regional do Trabalho no Ceará (SRT/CE) e da Secretaria da Proteção Social, o Ceará já apareceu em diversas investigações federais como estado de origem de vítimas.
  • Casos conhecidos envolvem tráfico para exploração sexual, trabalho doméstico análogo à escravidão e migração forçada de adolescentes para outras regiões com promessas falsas de emprego.
  • Em 2022, a Polícia Federal deflagrou operação que identificou um esquema de tráfico internacional de mulheres com origem em Fortaleza e Sobral e destino para Espanha e Itália.
  • Há também registros de exploração de mão de obra em fazendas no interior do estado e na zona de transição entre Ceará e Piauí.

 

 Observações e Desafios

  • O tráfico humano é um crime silencioso, de difícil denúncia e de alta subnotificação, com forte ligação a desigualdade social, machismo, racismo, e falta de fiscalização.
  • O Brasil ainda possui pouca estrutura de acolhimento e proteção às vítimas.
  • Em 2023, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi reformulado, mas ainda enfrenta limitações orçamentárias e pouca integração entre os entes federativos.

 

 

Sugestões de leitura:

·         Silvia Pimentel (org.), Tráfico de pessoas: uma abordagem para os direitos humanos (Editora Cortez)

·         Rosana Baeninger, Migração e tráfico de pessoas: uma perspectiva latino-americana

·         Julita Lemgruber, O Estado e o corpo das mulheres

·         Saskia Sassen, Expulsions: Brutality and Complexity in the Global Economy

·         Documentário: Not My Life (direção de Robert Bilheimer)

 

 

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