Lendo Cegueira Moral, de Zygmunt Bauman
Ao me
deparar com o livro Cegueira Moral, de Zygmunt Bauman, senti como se ele
tivesse colocado em palavras um mal-estar que me atravessa diariamente: essa
sensação de viver num mundo onde as fronteiras éticas se dissolvem e, ao mesmo
tempo, se naturalizam condutas que deveriam nos causar horror. Não é um livro
fácil, não pela linguagem, mas pelo espelho que ele nos oferece.
Bauman
parte da ideia de que a modernidade não produziu apenas progresso técnico e
conforto material, mas também um tipo específico de indiferença — uma
insensibilidade diante do sofrimento do outro. Essa é a tal “cegueira moral”:
não a incapacidade de distinguir o bem do mal, mas a erosão da responsabilidade
individual em meio às engrenagens sociais, econômicas e institucionais que
transformam pessoas em números, casos, estatísticas.
Enquanto
lia, não pude deixar de pensar em episódios do cotidiano brasileiro. Quando
vejo reportagens sobre mortes em hospitais públicos por falta de atendimento,
muitas vezes tratadas como burocracia, percebo como a vida humana é reduzida a
falha de sistema. Quando observo a violência policial contra jovens
periféricos, mascarada como “guerra ao crime”, percebo como a cegueira moral se
institucionaliza. Não é só omissão individual: é estrutura.
O que
mais me impressionou na leitura foi a forma como Bauman articula a vida
contemporânea com o nazismo. Ele mostra que os horrores do Holocausto não foram
obra de monstros irracionais, mas de pessoas comuns que, ao se esconderem atrás
de ordens e funções técnicas, desligaram sua bússola ética. Essa reflexão me
atinge porque percebo o quanto hoje, na nossa sociedade digital, repetimos esse
padrão. O algoritmo que decide quem terá crédito, quem receberá publicidade de
vagas de emprego, quem terá prioridade em serviços de saúde — tudo parece
neutro, mas carrega escolhas políticas e morais. E nós, usuários e
consumidores, muitas vezes aceitamos passivamente.
Em mim, a
leitura deixou a sensação incômoda de que a cegueira moral não é apenas “dos
outros”. Ela me atravessa. Quando ignoro o morador de rua na esquina, quando
fecho os olhos diante de um escândalo político e sigo a vida como se nada
fosse, quando aceito as regras do jogo de trabalho que exploram colegas —
também estou participando desse pacto de cegueira.
Bauman me
ensinou, com esse livro, que a luta ética é cotidiana. Ela não se dá apenas em
grandes gestos heroicos, mas em pequenas recusas, em gestos de
responsabilidade, em atos de não se esconder atrás da máquina social. A
cegueira moral só se combate com vigilância constante e com coragem de
reconhecer que a indiferença também é escolha.
Ao fechar
o livro, não encontrei respostas definitivas. Mas encontrei uma pergunta que me
acompanhará: quantas vezes, por dia, fecho os olhos para não ver o outro?
Indicações de leitura relacionadas:
- Hannah Arendt – Eichmann
em Jerusalém (a
banalidade do mal como chave de leitura da cegueira moral).
- Zygmunt Bauman – Modernidade
e Holocausto
(complemento direto ao tema).
- Byung-Chul Han – A
sociedade do cansaço (a lógica contemporânea da performance e da
indiferença).
- Susan Sontag – Diante da
dor dos outros (sobre nossa relação com o sofrimento humano
na mídia).
Indicações de filmes:
- A Lista de Schindler (1993, Steven Spielberg) –
retrato da indiferença e do horror do Holocausto.
- O Pianista (2002, Roman Polanski) –
sobrevivência em meio à brutalidade normalizada.
- Hotel Ruanda (2004, Terry George) –
genocídio e omissão internacional.
- Dois Papas (2019, Fernando Meirelles)
– diálogo sobre culpa, responsabilidade e ética na Igreja.
Cegueira Moral e o Brasil Contemporâneo
Ao terminar Cegueira
Moral, de Bauman, não consegui evitar o exercício de tradução do conceito
para o Brasil que habito. O livro fala da normalização do mal, da indiferença
diante do sofrimento do outro, da abdicação da responsabilidade individual em
nome de engrenagens institucionais. Quando volto os olhos ao nosso país, essa
cegueira me aparece de forma quase cotidiana, como se já fosse parte da nossa
respiração social.
Política: a indiferença como método de governo
No Brasil, a política institucional muitas
vezes funciona com base em cálculos que neutralizam a dor. Durante a pandemia,
vimos gestores minimizando centenas de milhares de mortes como “estatísticas
inevitáveis”. A frase “e daí?”, proferida no auge da tragédia, se tornou um
símbolo cristalino dessa cegueira moral: transformar corpos em números, dor em
curva epidemiológica, perdas em fatalismo. Hoje, diante da fome que voltou a
assombrar milhões, a resposta oficial frequentemente se resume a pacotes
econômicos ou slogans, como se a fome fosse um problema contábil e não humano.
Mídia: a estetização do sofrimento
A mídia brasileira também participa desse
processo. As chacinas em favelas ganham espaço jornalístico por algumas horas,
mas rapidamente cedem lugar ao noticiário de mercado ou às fofocas de
celebridades. Jovens negros mortos pela polícia são chamados de “suspeitos”
antes mesmo de qualquer investigação. Tragédias são transformadas em espetáculo
breve, anestesiando nossa capacidade de indignação. É a cegueira moral
televisiva: enxergar tudo, mas não ver nada.
Cotidiano: a indiferença banalizada
No meu cotidiano, percebo como essa cegueira
se infiltra em pequenas atitudes. O morador de rua que se torna invisível
quando passo apressado. O entregador de aplicativo que pedala na chuva enquanto
eu recebo minha comida com a tranquilidade de quem acredita estar apenas
“usando um serviço”. A mulher doméstica que enfrenta duas horas de transporte
lotado para limpar a casa de alguém que diz que “todo mundo tem oportunidades
iguais”. São cenas banais, mas nelas mora a naturalização do abismo social.
Estruturas que perpetuam a cegueira
Bauman insiste que a cegueira moral não é
apenas falha individual, mas produto de estruturas que diluem a
responsabilidade. No Brasil, isso se vê nas instituições que “lavaram as mãos”
diante de tragédias: a negligência ambiental em Mariana e Brumadinho, a omissão
sistemática com povos indígenas diante do garimpo ilegal, a lentidão
burocrática que trata a fome, a violência e a exclusão como “questões
complexas” sem solução imediata. Sempre há um culpado difuso, nunca alguém que
responda.
A pergunta que me fica
O paralelo com Bauman é doloroso porque ele
nos mostra que a barbárie não precisa de monstros para acontecer. Precisa
apenas de cidadãos que se acostumam, que fecham os olhos, que se convencem de
que não podem fazer nada. E no Brasil, país que carrega em sua história a
escravidão, a desigualdade extrema e a violência estrutural, a cegueira moral
não é acidente: é projeto.
E então me pergunto: quantas vezes, ao aceitar
o inaceitável em silêncio, colaboro com essa engrenagem? Quantas vezes, ao
transformar sofrimento em estatística, me torno parte dessa cegueira que tanto
critico? Bauman me provoca a olhar para isso sem anestesia: não basta ver a
tragédia, é preciso assumir responsabilidade diante dela.
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