Lendo Políticas do Encanto, de Paolo Demuru
Quando
abri Políticas do Encanto, de Paolo Demuru, tive a sensação de estar
entrando num território que mistura filosofia, semiótica e política, mas sempre
atravessado pela vida concreta. O livro não é um tratado distante: é uma
provocação. Ele me colocou diante de uma pergunta incômoda — como é que nos
deixamos seduzir, hoje, por imagens, discursos e afetos que, em vez de
emancipar, muitas vezes nos aprisionam?
O termo
“encanto”, que Demuru utiliza, não se refere apenas à beleza ou ao fascínio
superficial. Ele fala de algo mais profundo: a capacidade de certos discursos e
práticas de mobilizar afetos, desejos, sonhos coletivos. A política, para ele,
não se resume a projetos de governo, mas a modos de encantar corpos e mentes,
de capturar nossa atenção, de convocar identidades. E esse “encantamento” pode
ser emancipador, mas também pode ser manipulação.
Ao ler,
pensei muito no Brasil recente. Como foi possível que a extrema direita, em tão
pouco tempo, mobilizasse multidões com símbolos aparentemente simples — a
bandeira verde e amarela, a camisa da seleção, frases curtas e repetitivas?
Demuru ajuda a compreender: essas imagens e gestos não eram apenas símbolos,
eram feitiços sociais. Encantavam porque falavam menos à razão e mais ao afeto.
E, enquanto isso, uma parte da esquerda falava a uma linguagem mais
racionalizada, menos encantatória, como se o convencimento lógico fosse
suficiente num tempo de batalhas afetivas.
Mas
Demuru também aponta para outras formas de encantamento, aquelas que resistem
ao desencanto neoliberal. Penso, por exemplo, nas manifestações culturais
populares — no maracatu, no cordel, nas festas de rua — que também funcionam
como políticas do encanto: convocam corpos a estarem juntos, criam vínculos,
produzem comunidade. O livro me fez olhar para a força política daquilo que
muitas vezes é reduzido a “folclore” ou “cultura popular”.
O mais
desconfortável, para mim, foi perceber o quanto eu mesmo sou atravessado por
esses encantamentos. Não basta criticar o fascínio do outro: é preciso
reconhecer em mim os feitiços que me prendem. As redes sociais, por exemplo,
são fábricas permanentes de encantamento — o like, a notificação, a avalanche
de imagens. E ali, tanto quanto na política institucional, estamos sempre sendo
seduzidos, convocados, capturados.
Ler Políticas
do Encanto foi um exercício de autoanálise, mas também de sociologia.
Demuru mostra que a luta política contemporânea é, em grande medida, uma luta
pelo imaginário, pelas formas de afetar e ser afetado. Não se trata apenas de
políticas públicas, mas de políticas do sensível: do modo como sentimos,
sonhamos e narramos nossa vida coletiva.
Saí do
livro com duas certezas. Primeiro: não existe política sem encanto. Toda
prática política precisa mobilizar afetos, precisa seduzir. Segundo: precisamos
disputar os modos de encantar, pois há encantos que aprisionam e encantos que
libertam. Entre o marketing vazio e as experiências coletivas transformadoras,
cabe a nós escolher qual feitiço queremos alimentar.
Indicações de leitura relacionadas:
- Paolo Demuru – Semiótica
e Política
(para aprofundar sua abordagem do simbólico).
- Cornelius Castoriadis – A
Instituição Imaginária da Sociedade (sobre a força do imaginário na vida social).
- Ernesto Laclau – A Razão
Populista (a
política como disputa de significantes e afetos).
- Stuart Hall – A
Identidade Cultural na Pós-modernidade (como discursos e
encantamentos produzem identidades).
Filmes e documentários:
- Democracia em Vertigem (2019, Petra Costa) – sobre
o poder das narrativas e imagens na política brasileira recente.
- O Processo (2018, Maria Augusta Ramos)
– desmonta o encantamento discursivo em torno do impeachment.
- Cabra Marcado para Morrer (1984, Eduardo Coutinho) –
uma obra que mostra o poder político da memória e da narrativa coletiva.
Políticas do Encanto em Fortaleza
Ao pensar as ideias de Paolo Demuru a partir de Políticas do Encanto, não consigo evitar olhar
para a cena cultural e política de Fortaleza. Aqui, a cidade pulsa com práticas
que, mais do que entretenimento, são verdadeiras formas de encantamento
coletivo. São experiências que misturam arte, política e afeto, e que dialogam
diretamente com o que Demuru chama de “políticas do sensível”.
Nas ruas do Centro, vejo o teatro de grupos como o Manada Teatro, que
resgatam memórias de personagens marginalizados, como a beata Maria de Araújo,
e as colocam no palco como feridas abertas da história brasileira. Esse gesto
não é apenas arte: é uma política do encanto que mobiliza corpos e
consciências, convidando o público a sentir, mais do que compreender
racionalmente, a injustiça histórica.
Nas praças e nos coletivos de bairro, há a
música que cria comunidades temporárias. Shows como os de Jota Pê na Caixa Cultural, Alline Allmeida no
CCBNB ou os saraus em vários espaços da cidade, demais equipamentos culturais
da cidade com programações gratuitas ou a preços acessíveis
transformam encontros artísticos em experiências de pertencimento. Quando todos
cantam juntos, quando o refrão ecoa no espaço, aquilo é mais do que espetáculo:
é encantamento político, é produção de laço social que resiste à lógica do
isolamento neoliberal.
Vejo também os movimentos sociais periféricos que usam a cultura como
arma de luta. Do rap que ecoa nos bairros mais distantes do centro até os
coletivos de grafite e slam poetry, há uma estética de combate que seduz não
apenas pelo conteúdo político, mas pela força da forma, pelo ritmo, pela
emoção. Ali, como diria Demuru, está a disputa pelo imaginário: o encantamento
que pode libertar, porque dá voz a quem foi silenciado.
E como esquecer a potência da Biodança em grupos como Vínculos em Movimento
ou das caminhadas do Percursos Urbanos,
que transformam práticas cotidianas — dançar, andar, conversar — em
experiências coletivas de encantamento? Não se trata de política institucional,
mas de política do sensível: corpos em movimento que se reconhecem e, nesse
reconhecimento, constroem uma outra cidade possível.
Fortaleza, nesse sentido, é um laboratório
vivo das ideias de Demuru. Entre o teatro que reencena memórias, a música que
reúne, a arte de rua que denuncia e os coletivos que criam novas formas de
estar juntos, a cidade mostra que o encantamento não pertence apenas à
propaganda ou à manipulação de massas. Ele pode ser também resistência,
invenção, alegria partilhada.
Lendo Políticas
do Encanto, percebi que a cena cultural de Fortaleza não é apenas
“cultura”, mas um campo de disputa política. O encantamento que nasce do canto,
da dança, da palavra e da memória é também uma forma de insurgência contra a
cegueira moral e o desencanto neoliberal. Aqui, a cada roda de samba, a cada
sarau, a cada performance, sinto que estamos disputando qual feitiço deve guiar
a cidade: o feitiço do medo ou o feitiço da esperança.
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