A ONU ainda serve? Reflexões sobre sua utilidade e possíveis reformas

 

Não consigo me esconder atrás de uma falsa neutralidade diante da pergunta: qual a utilidade da ONU hoje? Cresci ouvindo que a Organização das Nações Unidas era o espaço máximo de diálogo internacional, o fórum que havia nascido das cinzas da Segunda Guerra para impedir novos horrores. Mas, olhando para o mundo em chamas — Gaza devastada, Ucrânia em guerra, golpes na África, crises migratórias, colapso climático —, me pergunto: de que tem servido a ONU, afinal?

Na prática, vejo uma instituição paralisada por sua própria arquitetura. O Conselho de Segurança é o exemplo mais evidente: cinco países com poder de veto — EUA, Rússia, China, França e Reino Unido — ditam os rumos do planeta. Em vez de garantir segurança coletiva, transformaram o Conselho em trincheira de seus interesses nacionais. Basta um veto, e genocídios, ocupações e violações de direitos humanos seguem sem condena. O resultado é a sensação de impotência: a ONU denuncia, emite relatórios, faz declarações, mas pouco pode contra os poderosos.

Ao mesmo tempo, não quero cair na tentação fácil de declarar que a ONU é inútil. Não é. Suas agências têm impacto concreto: a OMS coordenou esforços contra a pandemia; o ACNUR ainda é referência no acolhimento de refugiados; a UNICEF protege crianças em contextos de guerra. A ONU é útil no que chamo de sua dimensão humanitária e técnica. Mas é politicamente débil, refém de um arranjo institucional pensado em 1945, quando o mundo era outro.

Então, como reformulá-la? Não falo de utopia inalcançável, mas de medidas concretas:

  1. Reformar o Conselho de Segurança — ampliar a representação para incluir países do Sul Global (Brasil, Índia, África do Sul, Nigéria), acabar ou limitar drasticamente o poder de veto, ou pelo menos submetê-lo a regras (como impedir o veto em situações de crimes contra a humanidade).
  2. Democratizar o financiamento — hoje, quem paga mais dita mais. Precisamos de um modelo que não reproduza a desigualdade de poder econômico.
  3. Fortalecer a Assembleia Geral — que hoje tem peso quase simbólico, quando poderia ser espaço real de deliberação, capaz de equilibrar o desequilíbrio do Conselho.
  4. Criar mecanismos de participação da sociedade civil — movimentos sociais, organizações indígenas, coletivos ambientais e de direitos humanos deveriam ter assento consultivo efetivo, não apenas como ouvintes ocasionais.
  5. Atualizar a agenda — não dá mais para pensar apenas em guerras entre Estados. As ameaças do século XXI são também climáticas, digitais, sanitárias e migratórias. A ONU precisa ser capaz de regular plataformas globais de tecnologia, enfrentar emergências ambientais e lidar com fluxos populacionais em escala inédita.

Ainda acredito que precisamos de uma instância multilateral. O que não podemos é manter uma ONU sequestrada pelas potências, impotente diante das tragédias. Reformular a ONU não é sonho distante, é condição de sobrevivência coletiva. Se a organização continuar como está, será lembrada como museu da diplomacia, e não como instrumento vivo de paz.

 

 Indicações de leitura para aprofundar

  • Boutros Boutros-Ghali – Unvanquished: A U.S.-U.N. Saga (1999), memórias críticas de um ex-secretário-geral.
  • José Flávio Sombra Saraiva – Relações Internacionais: Dois Séculos de História (2010), com análises sobre o papel da ONU no sistema mundial.
  • Celso Amorim – Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva (2015), que mostra como o Brasil navegou na ONU.
  • Susan Rice – Tough Love (2019), com visão interna sobre as negociações no Conselho de Segurança.
  • Richard Falk – On Humane Governance (1995), reflexão sobre a necessidade de democratizar a ordem internacional.

 

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