Filhos que Matam os Pais: Um Olhar Pela Psicologia

 

Quando leio notícias ou estudo casos de filhos — às vezes ainda crianças ou adolescentes — que matam seus pais, sinto um abalo profundo. Não apenas pelo horror imediato, mas porque isso toca nas camadas mais delicadas da vida psíquica: o vínculo fundante entre pais e filhos. A Psicologia nos ensina que esse laço é, ao mesmo tempo, fonte de amor, proteção e conflito. A agressividade contra os pais não surge do nada, mas de um processo histórico, relacional e subjetivo que precisa ser compreendido.

 

O Paradoxo do Vínculo Primário

Do ponto de vista psicanalítico, Freud já lembrava que as relações familiares carregam ambivalência: amor e ódio coexistem. A criança depende do pai e da mãe, mas também sente raiva de suas interdições, da sensação de abandono, ou da violência quando ela existe. Melanie Klein aprofundou isso ao mostrar como a fantasia de destruir os pais, em alguns momentos, faz parte do desenvolvimento normal — mas, em contextos de trauma, negligência ou abuso, essa fantasia pode se cristalizar e se tornar ato.

 

Entre a Violência Estrutural e a Subjetividade

Do ponto de vista social e da psicologia do desenvolvimento, não podemos descolar esses atos da violência estrutural. Muitos desses casos acontecem em famílias marcadas por abuso físico, sexual, humilhação ou contextos de extrema opressão. A criança cresce em um ambiente onde a agressividade é norma, e, sem recursos emocionais, pode reproduzir no ato extremo a lógica da destruição que viveu.

Ao mesmo tempo, não há determinismo absoluto. Crianças expostas a violência podem encontrar saídas criativas, vínculos protetores, elaborando sua dor. Quando não há rede de apoio — escola, comunidade, psicoterapia — o risco de repetição e de acting out aumenta.

 

O Adolescente em Colapso

A adolescência, período de intensa reorganização psíquica, é especialmente vulnerável. O desejo de independência se mistura à incapacidade de suportar frustrações, e, em certos contextos, a figura parental deixa de ser referência e passa a ser vivida como inimigo. A ausência de mediações sociais pode transformar uma disputa familiar em tragédia.

 

Uma Vinheta Clínica Ficcional

Lembro de um caso fictício que me serve como exemplo: João, 14 anos, dizia em análise que “o pai roubou sua infância”. O pai alcoólatra agredia a mãe e o filho. João oscilava entre querer ser protegido e desejar que o pai simplesmente deixasse de existir. No setting, emergia a fantasia de matar o pai. Em um contexto de escuta e elaboração, essa fantasia pôde ser simbolizada, transformada em palavra e não em ato. Mas sabemos que, sem espaço de acolhimento, essa energia pulsional pode se materializar em violência letal.

 

Reflexões Finais

Escrever  sobre esse tema é admitir também meu desconforto. Não há explicação única, tampouco justificativa. O que existe é a necessidade de compreender — para prevenir, para intervir, para não transformar filhos em monstros e nem pais em meras vítimas, mas enxergar a teia de dores e violências que sustenta o fenômeno. Como psicólogo em formação, Psicanalista e cidadão, acredito que só com mais políticas públicas de saúde mental, fortalecimento das famílias e espaços de escuta conseguiremos evitar que a fantasia de destruição vire notícia de sangue.

 

Indicações de Leitura

  • Freud, S.Totem e Tabu (sobre ambivalência, parricídio simbólico).
  • Klein, M.Inveja e Gratidão (sobre fantasias destrutivas na infância).
  • Donald WinnicottO ambiente e os processos de maturação (importância do ambiente suficientemente bom).
  • Donald Black & Thomas WidigerAggression and Violence: A Social Psychological Perspective (sobre dinâmica social da violência).
  • Estudos de casos brasileiros em Psicologia Jurídica, que analisam filicídio e parricídio sob a ótica da clínica e do direito.

 

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