O avesso da Psicanálise: minhas leituras do Seminário 17 de Lacan

 

O Seminário 17 de Lacan, O avesso da Psicanálise, não é para mim apenas um texto teórico, mas uma travessia incômoda. É um livro que me obriga a olhar para além das paredes da clínica, para os dispositivos sociais e políticos que estruturam nosso mal-estar. Cada página me faz pensar não só no inconsciente, mas também na história do Brasil, na economia global, na forma como o poder circula e nos captura.

Lacan nos apresenta, nesse seminário, os quatro discursos: o do mestre, o da histérica, o do analista e o universitário. Ler isso em primeira pessoa é reconhecer como esses discursos atravessam a minha vida cotidiana. O discurso do mestre aparece quando me sinto dominado por figuras de autoridade, quando minha palavra é reduzida ao lugar de resposta. O da histérica, quando percebo que é a própria insatisfação — o “não é isso!” — que me move a questionar e a desejar. O discurso do analista, quando consigo sustentar o vazio, deixando o outro falar, sem impor respostas rápidas. E o discurso universitário, tão presente em nossa cultura, quando percebo como o saber é mobilizado mais como instrumento de poder do que de emancipação.

O que Lacan chama de “avesso da psicanálise” é, para mim, esse gesto de deslocar o olhar: mostrar que o inconsciente não está isolado em um consultório, mas amarrado à política, ao capital, às formas de gozo que o sistema nos impõe. E o mais perturbador é perceber como o capitalismo, de certo modo, já sabia usar esses discursos. O capitalismo globalizado é um mestre moderno que fala a linguagem da ciência, promete satisfação ilimitada e, ao mesmo tempo, gera sujeitos histéricos, sempre insatisfeitos, sempre correndo atrás do objeto que falta.

Ao ler esse seminário, sinto o choque entre teoria e experiência. Por exemplo, quando Lacan fala que “o discurso do capitalista é uma mutação do discurso do mestre”, vejo imediatamente as engrenagens da sociedade de consumo que me rodeia. O sujeito não é mais apenas mandado obedecer; ele é convocado a gozar, a consumir, a se realizar no objeto. E eu me pergunto: até que ponto minhas escolhas, meus desejos, não estão também atravessados por esse imperativo do capital?

O Seminário 17 me faz pensar também na política. O que é o discurso do mestre senão a lógica autoritária que insiste em reaparecer em nossa história? O que é o discurso universitário senão a burocratização do saber que, em vez de emancipar, normatiza e classifica? O que é o discurso histérico senão a pulsação das ruas, dos movimentos que gritam contra a opressão, ainda que sem encontrar uma resposta final? E o que pode ser o discurso do analista senão uma aposta rara: a de sustentar o vazio, o silêncio, para que um sujeito se reinvente?

Escrevo esse artigo com uma mistura de fascínio e inquietação. Fascínio porque Lacan, nesse seminário, mostra a força da psicanálise como crítica social. Inquietação porque me vejo dentro dessa rede de discursos, sem poder escapar. Ler O avesso da psicanálise é aceitar que não existe neutralidade, que estamos sempre implicados em algum discurso — e que talvez o trabalho analítico seja justamente reconhecer em qual deles estamos enredados.

 

 Indicações de leitura paralela

  • Jacques Lacan – O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970)
  • Slavoj Žižek – O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan (1991), que explora os discursos em chave político-filosófica.
  • Elisabeth Roudinesco – Lacan, Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento (1993), para situar o contexto histórico desse seminário.
  • Christian Dunker – Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (2011), que discute como os discursos lacanianos se aplicam à clínica contemporânea.
  • Colette Soler – O inconsciente a céu aberto (2005), que revisita os discursos de Lacan em tempos atuais.

 

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