“Entre a chantagem e o poder: um artigo sobre a má relação entre Câmara, Senado e Governo Federal — e o que nós, sociedade civil, podemos fazer”
Nos
últimos meses, tenho assistido com crescente desconforto ao que se tornou uma
rotina política no Brasil: um permanente braço de ferro entre o Congresso
Nacional e o Governo Federal.
A cada semana, uma nova disputa — seja pela liberação de emendas, pela
derrubada de vetos, pela tramitação de projetos estratégicos ou pela simples
demonstração de força.
O que era para ser diálogo republicano entre poderes transformou-se em hostilidade
disfarçada de autonomia institucional.
O que
mais me inquieta é perceber que, em muitos momentos, o Executivo já não
governa — apenas administra crises.
E o Legislativo, em vez de ser um espaço de representação popular, parece agir
como um condomínio de interesses privados.
1. O Congresso que cobra para funcionar
Hoje, o
governo não negocia projetos, negocia sobrevivência.
A cada votação importante, paira a ameaça: se não houver liberação de emendas,
o projeto não passa.
Essa lógica de chantagem orçamentária destrói qualquer noção de planejamento
nacional.
Transforma o Estado em um grande balcão de negócios e retira da sociedade
civil o poder de decidir o rumo do país.
Mas é
preciso ser justo: essa dinâmica não é obra de um só governo.
Ela é fruto de décadas de degradação política, do avanço de um
fisiologismo que se traveste de pragmatismo e de uma Constituição que, embora
democrática, concentrou muito poder no Congresso sem mecanismos de controle
direto pela sociedade.
2. O governo que teme o confronto
O outro
lado dessa moeda é o Executivo — acuado, hesitante, temeroso de perder
sustentação parlamentar.
O governo se vê obrigado a negociar até o inegociável, para não ver pautas
essenciais derrotadas.
Mas um governo que vive de concessões sucessivas acaba se tornando um refém
cordial: sobrevive, mas perde o comando político.
Quando a
prioridade passa a ser “não irritar o Congresso”, o país deixa de ser guiado
por um projeto e passa a ser dirigido pela conveniência.
E, nesse ambiente, o poder popular — aquele que nasce nas ruas, nas
comunidades, nos movimentos — simplesmente desaparece.
3. O povo fora da política — e a política fora do
povo
Sinto que
vivemos um divórcio profundo entre a sociedade civil e as instituições.
O cidadão comum, saturado de escândalos e da linguagem cifrada da política, retirou-se
do debate.
E é justamente essa ausência que alimenta o poder dos que agem em causa
própria.
Enquanto
os movimentos populares, ambientais, culturais e de base estão ocupados
tentando sobreviver, o Congresso legisla a portas fechadas sobre questões
que afetarão gerações inteiras — como o desmonte do licenciamento
ambiental, a liberação de agrotóxicos e o enfraquecimento das demarcações
indígenas.
Ou seja: o poder está sendo decidido por quem não representa o futuro, mas o
atraso.
4. O que nós, sociedade civil, podemos fazer
Não é
possível esperar que as instituições se corrijam sozinhas.
Se o povo quiser ter poder real, precisa reconquistar o direito de
participar diretamente das grandes decisões nacionais.
E há caminhos para isso.
1.
Reforma política com mecanismos de democracia direta.
Precisamos lutar pela criação de plebiscitos e referendos obrigatórios
em temas de impacto nacional — especialmente ambientais, de concessões de
recursos naturais e de privatizações estratégicas.
A Noruega, a Suíça e até o Chile vêm experimentando formas de consultas
públicas vinculantes, nas quais o voto popular tem peso real.
2.
Revitalização dos conselhos e conferências nacionais.
Durante anos, esses espaços foram fundamentais para que comunidades, povos
tradicionais e movimentos sociais influenciassem políticas públicas.
Muitos foram extintos ou esvaziados.
É urgente recriar e fortalecer esses canais, garantindo que a
participação da sociedade civil não seja apenas decorativa, mas deliberativa.
3.
Transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares.
As emendas não são o problema em si — o problema é a opacidade.
Precisamos de um sistema público e acessível que mostre quem pediu, quanto
recebeu e o que foi feito com o dinheiro.
Sem luz, o fisiologismo prospera.
4.
Educação política e formação cidadã.
Não há democracia sustentável com uma população alijada da compreensão do
processo político.
É preciso investir em educação cívica nas escolas, nas universidades,
nas comunidades, nas redes sociais.
Saber como funciona o Estado é o primeiro passo para tomá-lo de volta.
5.
Mobilização popular e pressão social organizada.
Nenhum poder cede espaço sem pressão.
Precisamos transformar causas difusas — como a defesa do meio ambiente, da
democracia e da transparência — em movimentos de massa permanentes,
capazes de pautar o debate público e obrigar as instituições a ouvir.
Não basta protestar depois que a floresta cai; é preciso agir antes da
votação que autoriza o machado.
5. O futuro depende do quanto resistirmos
Não
acredito que o Brasil esteja condenado ao fisiologismo eterno.
Mas acredito que a democracia não se renova sozinha.
Se quisermos um país onde o governo governe, o Congresso legisle e o povo
participe, teremos que sair da passividade e disputar o poder — não para
dominá-lo, mas para democratizá-lo.
O
problema não é termos um Congresso forte, mas termos um Congresso forte
contra o povo.
E o antídoto para isso não é um Executivo autoritário, mas uma sociedade
civil consciente e ativa.
Enquanto
o povo não tiver instrumentos reais de decisão, continuaremos assistindo ao
mesmo espetáculo:
um governo acuado, um Congresso arrogante e uma população reduzida a
espectadora da própria história.
6. Conclusão: entre o medo e a maturidade política
O Brasil
precisa, urgentemente, amadurecer politicamente.
Não se trata apenas de reformas legais, mas de reformas culturais e éticas.
Temos que abandonar o medo de participar, o ceticismo fácil, a ideia de que
política é coisa “dos outros”.
Porque, se a sociedade não ocupa o espaço público, o mercado e o
clientelismo o fazem.
Escrevo
este artigo não com pessimismo, mas com um tipo de esperança exigente — a
esperança de quem sabe que a transformação não virá de cima, mas de dentro e
de baixo.
E talvez esse seja o verdadeiro sentido de democracia:
não esperar que alguém nos salve, mas aprender, juntos, a governar o que é
de todos.
Leituras
e referências recomendadas:
- A Democracia no Brasil:
Desequilíbrios e Distorções — Wanderley Guilherme dos Santos
- A Política e a Alma — Cornel West
- Democracia e Representação — Leonardo Avritzer
- O Contrato Social — Jean-Jacques Rousseau
- O Príncipe Republicano — Sérgio Abranches
- A Reinvenção da Democracia — Boaventura de Sousa
Santos
Porque,
no fim das contas, o problema do Brasil não é a falta de poder — é a falta de
quem o exerça em nome de todos.
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