Sob o sol da cidade: ler Fortaleza com Jan Gehl e Birgitte Svarre

 

Ler A vida na cidade: Como estudar, de Jan Gehl e Birgitte Svarre, foi como colocar novos óculos para enxergar Fortaleza — uma cidade que conheço desde sempre, mas que, a partir dessa leitura, começou a se mostrar de um modo diferente. Gehl e Svarre nos convidam a observar a vida urbana não pelos prédios, nem pelos planos diretores, mas pelos gestos miúdos: quem senta na sombra de uma árvore, quem atravessa correndo uma avenida, quem conversa encostado num muro ao fim da tarde.

Comecei a aplicar esse olhar quando caminhei pelo Calçadão da Beira Mar, recém-revitalizado. Vi casais caminhando, grupos de jovens patinando, vendedores de água de coco, turistas tirando fotos do pôr do sol e senhores jogando dominó sob o quiosque. Era a tradução viva do que Gehl chama de “vida entre prédios”: o espaço público como palco das relações humanas, um organismo que só existe quando habitado.

Mas essa mesma cidade revela seus contrastes quando a gente sai das áreas turísticas. Em bairros como o Bom Jardim, o Conjunto Ceará ou a Parangaba, o calor castiga as calçadas estreitas e o trânsito sufoca as praças que resistem. As ruas, muitas vezes, não foram desenhadas para as pessoas, mas para os carros — o que cria o oposto da “escala humana” que Gehl e Svarre defendem. Nessas regiões, caminhar é um ato político: desafiar o asfalto quente, o barulho, a ausência de sombra.

O livro me fez perceber que o semiárido urbano tem suas próprias dinâmicas — uma relação muito particular com o clima, com o corpo e com o tempo. A vida nas ruas de Fortaleza é marcada pela busca incessante por sombra, vento e refúgio. As pessoas se agrupam embaixo de árvores, improvisam bancos, abrem cadeiras nas calçadas, estendem conversas nas esquinas. Esses gestos, aparentemente simples, são o que Gehl chamaria de “vida espontânea”: aquilo que acontece quando o espaço permite que a convivência floresça.

No Centro da cidade, especialmente na Praça do Ferreira ou na Praça dos Leões, essa vida se mostra com força. Ali, a cidade é uma grande sala de estar: vendedores de pipoca, estudantes, aposentados, artistas de rua. Observar o ritmo dessas praças é entender o que o livro propõe — que o verdadeiro estudo da cidade começa pela observação paciente de quem a vive.

No entanto, ainda falta muito para que Fortaleza se torne uma cidade realmente voltada para as pessoas. A mobilidade ainda privilegia o automóvel, as ciclovias são fragmentadas e, fora do eixo central, muitas praças são esquecidas. As políticas urbanas nem sempre consideram o que Gehl chama de “escala humana” — a altura do olhar, a velocidade dos passos, o tempo de permanência. E no semiárido, onde o sol e o vento moldam o cotidiano, ignorar o corpo é também ignorar a cultura.

Em regiões como o Cariri cearense, as lições de Gehl e Svarre ganham outra camada. Ali, o calor e a seca impõem uma outra estética de convivência: os bancos sob as árvores, as redes na calçada, o costume de conversar ao entardecer. Esses gestos são formas de resistência climática e social. São, também, urbanismo em ato.

Depois da leitura, passei a andar por Fortaleza com outro olhar — mais lento, mais curioso. Observo como as pessoas ocupam os espaços, onde param, onde fogem. A cidade, como dizem Gehl e Svarre, se revela na repetição dos pequenos movimentos. E talvez a maior lição que tirei do livro é que o futuro urbano do semiárido não depende apenas de grandes obras, mas de pequenos gestos de cuidado: plantar uma árvore, abrir uma calçada mais larga, criar sombras, devolver o tempo às pessoas.

Afinal, como Gehl e Svarre lembram, “a boa cidade é aquela em que queremos estar, não apenas passar.” E isso vale — talvez mais do que nunca — para uma Fortaleza que ainda busca equilibrar modernização e humanidade sob o sol do Atlântico.

 

Sugestões de leitura complementares

  • Milton Santos – A Urbanização Brasileira
    Um clássico que ajuda a compreender as desigualdades estruturais e o processo de urbanização no Brasil.
  • Jane Jacobs – Morte e vida das grandes cidades
    Para pensar o espaço urbano como palco da vida social e da diversidade.
  • Roberto Monte-Mór – Fortaleza: O espaço e o tempo da cidade
    Estudo fundamental sobre as transformações urbanas e as contradições sociais de Fortaleza.
  • Pedro Fiori Arantes – Arquitetura na era digital-financeira
    Uma leitura crítica sobre as formas contemporâneas de urbanização e especulação imobiliária.
  • Carlos Walter Porto-Gonçalves – A globalização da natureza e a natureza da globalização
    Para compreender a relação entre meio ambiente, território e modos de vida no semiárido e no Sul Global.

 

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