Bravíssimo: o riso que revela o Brasil que ainda podemos ser
Hoje fui
ao Centro Cultural Banco do Nordeste de Fortaleza assistir à peça Bravíssimo,
de Ricardo Guilherme, encenada em comemoração aos seus 70 anos de vida e
arte. Entrei no teatro com a curiosidade de quem já conhece um pouco do seu
humor refinado e do seu olhar crítico sobre o Brasil, mas saí com a sensação de
ter participado de algo maior — um espelho poético e provocador do país que
somos.
A peça é
uma espécie de radiografia cômica da alma brasileira, um texto que, entre
gargalhadas e silêncios, faz a gente se ver — e se reconhecer. No palco, duas
figuras se enfrentam simbolicamente: a grã-fina, caricatura da elite
colonizada, que despreza tudo o que tem sotaque, cor e cheiro de Brasil; e a
vizinha suburbana, mulher popular, esperançosa e cheia de sabedoria
cotidiana, que insiste em acreditar na capacidade de transformação do país.
Entre
elas se desenrola um diálogo que é, ao mesmo tempo, um embate e um abraço,
uma crítica e um consolo. A grã-fina fala em francês, cita grifes, sonha
com Miami e Paris. A vizinha responde com ditos populares, histórias do bairro
e um otimismo que só quem vive o real sabe sustentar. Uma fala vem de cima, do
pedestal da vaidade e do ressentimento colonial; a outra vem da calçada, do
quintal, da fé simples em um Brasil que ainda pulsa.
Assisti à
peça pensando em como esse complexo de vira-lata, tão bem apontado por
Nelson Rodrigues e retomado aqui por Ricardo Guilherme, continua atravessando
nossas relações. Ainda há, em tantos de nós, esse desejo de ser “moderno”
negando o próprio chão, como se o que é nosso fosse sempre inferior. É um sentimento
sutil, mas corrosivo — o mesmo que nos faz preferir o estrangeiro ao nacional,
a cópia ao original, o inglês ao português, a aparência à autenticidade.
Ricardo
Guilherme, com seu humor inteligente e sua presença cênica afiada, transforma
esse diagnóstico em espetáculo. Não há moralismo, há ironia; não há rancor, há
reflexão. Ele nos faz rir de nossas contradições, mas também nos convida a
superá-las. E talvez seja esse o papel mais bonito do teatro: nos devolver a
nós mesmos, com mais lucidez e menos vaidade.
Ao final,
fiquei pensando que Bravíssimo é mais do que uma peça — é uma celebração
da resistência cultural. Ver Ricardo Guilherme em cena aos 70 anos é
testemunhar a continuidade de uma arte comprometida com o pensamento crítico e
com a alegria popular. Ele representa uma geração que acredita no poder do riso
como ferramenta política, e no palco como espaço de encontro, não de fuga.
Quando as
luzes se apagaram, o público aplaudiu de pé — e não apenas pelo talento do
artista, mas pela coragem de dizer, em voz alta, o que tantos sentem e poucos
enfrentam: o Brasil precisa se olhar com menos desprezo e mais ternura.
Saí do
CCBNB com a certeza de que Bravíssimo é, acima de tudo, uma lição de
autoestima nacional. Um lembrete de que a verdadeira grandeza não está em
imitar o mundo, mas em reconhecer a beleza que já habita o nosso quintal.
Sugestões de leitura e reflexão
- Nelson Rodrigues – Complexo
de vira-lata
(crônica que inspira a peça e reflete sobre a autonegação brasileira);
- Darcy Ribeiro – O povo
brasileiro
(uma celebração das misturas e potências culturais do país);
- Sérgio Buarque de Holanda – Raízes
do Brasil
(sobre o homem cordial e os paradoxos da identidade nacional);
- Ricardo Guilherme – O
teatro como ato de resistência (textos e reflexões do próprio autor sobre
arte e cidadania).
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