Entre mundos: o que aprendi lendo O Xamanismo, de Mircea Eliade

 

Ler O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, de Mircea Eliade, foi como atravessar um portal. Poucos livros me colocaram tão intensamente diante da pergunta sobre o que é ser humano — e sobre o que esquecemos de nós mesmos quando reduzimos o mundo ao que é visível, mensurável, “real”.

Desde as primeiras páginas, senti que Eliade não falava apenas de povos distantes ou rituais antigos, mas de algo essencial que se perdeu na nossa modernidade: a ligação sagrada entre o corpo, a natureza e o espírito. O xamã, em sua leitura, não é um feiticeiro folclórico nem um místico isolado. Ele é o mediador entre o céu e a terra, o curador das almas, o guardião da ordem cósmica — aquele que, através da dor e do êxtase, encontra caminhos de cura para si e para a comunidade.

O livro é denso, mas profundamente poético. Eliade mergulha nas tradições siberianas, nas práticas ameríndias, nos rituais africanos e até nas sobrevivências do xamanismo em culturas cristianizadas e modernas. O que une todas essas experiências é o êxtase como forma de conhecimento — não um delírio, mas uma expansão da consciência, uma viagem simbólica ao “outro mundo”, onde o xamã recolhe forças e sabedoria para restaurar o equilíbrio da vida.

O que me tocou mais foi perceber que, na visão xamânica, adoecer é perder a alma. O mal não é apenas biológico ou psicológico; é, sobretudo, espiritual — uma desconexão entre o ser e o cosmos, entre o indivíduo e a teia da existência. E o trabalho do xamã é justamente o de reconduzir o espírito ao corpo, reintegrar o humano ao fluxo do sagrado.
Quantas vezes, na nossa vida moderna, não sofremos desse mesmo mal? Quantas doenças contemporâneas — depressão, ansiedade, burnout — não são também expressões dessa perda da alma?

Eliade mostra que, para o xamã, o sofrimento não é um castigo, mas um rito de passagem. É no confronto com a dor que se abre a possibilidade de transformação.
Enquanto a ciência moderna tenta suprimir o sofrimento a qualquer custo, o xamanismo o reconhece como parte da travessia. O xamã adoece para aprender a curar. Desce ao inferno para encontrar o caminho de volta. É nessa descida que se torna humano.

Ao fechar o livro, tive a sensação de que o xamanismo não é apenas uma religião antiga — é uma dimensão esquecida do humano, uma linguagem simbólica que ainda habita nossos sonhos, nossas intuições, nossos impulsos criativos.
Eliade nos faz perceber que o mundo contemporâneo, com toda sua racionalidade, continua sedento de transcendência. Buscamos gurus, terapias alternativas, meditação, espiritualidade, porque o espírito moderno está cansado de viver apenas na superfície.

Ler O Xamanismo é, no fundo, um convite à reconciliação.
Reconciliação com o corpo, com a natureza, com o mistério.
Talvez não precisemos ser xamãs, mas precisamos aprender com eles: a escutar o invisível, a honrar o silêncio, a reencontrar o sagrado que pulsa dentro da vida comum.

Hoje, quando caminho sozinho, penso nos povos antigos que vi descritos nas páginas de Eliade.
Penso que o verdadeiro xamanismo talvez comece quando temos a coragem de silenciar o ruído do mundo e ouvir o som da própria alma — aquela que tantas vezes deixamos se perder pelo caminho.

 

Sugestões de leitura complementar

  • Mircea Eliade – O Sagrado e o Profano
    (Para compreender a estrutura simbólica da experiência religiosa.)
  • Carl Gustav Jung – O Homem e seus Símbolos
    (Sobre o inconsciente coletivo e os arquétipos que atravessam o imaginário humano.)
  • Joseph Campbell – O Herói de Mil Faces
    (Diálogo profundo com a ideia da jornada iniciática e o mito como caminho de transformação.)
  • Carlos Castañeda – A Erva do Diabo
    (Relato etnográfico e filosófico sobre o aprendizado xamânico e o olhar ampliado sobre o real.)
  • Davi Kopenawa e Bruce Albert – A Queda do Céu
    (O pensamento xamânico yanomami como crítica ao mundo dos brancos e defesa da floresta como ser vivo.)

 

Parte inferior do formulário

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Na trilha do mestre, no compasso da memória: João Suassuna e Pedro Salustiano no CCBNB Fortaleza

Capiba, a música que pulsa em nossa memória

Fabíola Liper canta Ângela Rô Rô: quando a voz vira testemunho do indizível