Entre o sofrimento e o descaso: reflexões sobre a saúde mental pública no Brasil

 

Esses dias li uma notícia que me deixou sem ar.
Um jovem, em João Pessoa, com histórico de sofrimento mental, entrou na jaula de uma leoa no zoológico da cidade e acabou morto. Sua mãe também apresentava transtornos psíquicos. Ele já havia se envolvido em atos infracionais e vivido uma história marcada por abandono, pobreza e desamparo. Não consegui ler aquilo como apenas “um caso trágico”. Vi, ali, o retrato de um país inteiro — o retrato de uma dor que não encontra escuta.

Trabalho, estudo e circulo há anos na área da psicologia, e confesso: cada vez que escuto histórias assim, sinto o peso da omissão social que atravessa a saúde mental pública no Brasil. Temos uma rede de atenção — os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), os NASF, os programas de atenção básica —, mas ela não dá conta do volume de sofrimento que a desigualdade produz. A pobreza, o desemprego, a violência e o abandono familiar não são apenas “contextos”; são fatores permanentes de adoecimento psíquico.

O jovem que entrou na jaula não buscava apenas um animal — buscava, talvez, um limite, um olhar, um sentido. E o Estado, mais uma vez, não estava lá.
Quantos meninos e meninas vivem nas periferias do país com o mesmo desamparo silencioso? Quantos recebem rótulos — “problemático”, “infrator”, “doido” — antes mesmo de receberem acolhimento?

A saúde mental pública, no Brasil, ainda é fortemente marcada por falta de investimento, precarização e descontinuidade das políticas públicas. O modelo antimanicomial, construído com tanto esforço nos anos 1990 e 2000, vem sendo ameaçado por cortes de verba e pela volta de práticas asilares travestidas de “centros terapêuticos”. Em muitos municípios, faltam psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais e, principalmente, projetos intersetoriais que articulem saúde, educação, segurança e assistência social.

Quando falo de saúde mental, penso também na ausência de políticas de cuidado integral para famílias em vulnerabilidade. O sofrimento psíquico raramente é isolado. Ele se espalha pela casa, atravessa gerações, molda vínculos e repete traumas. Mães sobrecarregadas, pais ausentes, jovens sem perspectiva — o resultado é um ciclo de dor que se retroalimenta.

Precisamos, urgentemente, repolitizar o debate sobre a loucura. A dor psíquica não é uma falha individual, mas uma expressão das contradições sociais que nos atravessam. O sujeito que adoece é também o sujeito que foi empurrado para fora da vida comum — sem espaço, sem renda, sem afeto e sem Estado.
Winnicott dizia que o ambiente pode enlouquecer uma criança. No Brasil, o ambiente — feito de exclusão, miséria e racismo estrutural — enlouquece adultos e crianças diariamente.

Mas não basta indignar-se. É preciso propor mudanças concretas.
É urgente preparar equipes especializadas de saúde para atuar em situações de crise e urgência psiquiátrica. Equipes treinadas, com psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e psiquiatras, devem ser acionadas junto à polícia em casos de surtos ou comportamentos agressivos. Essa integração entre saúde e segurança pública pode salvar vidas.
Hoje, vemos o contrário: a polícia é chamada para intervir onde deveria estar o cuidado. E, sem preparo, age com medo, violência e letalidade. Quantas pessoas em surto já morreram por não terem sido compreendidas? Quantos casos terminam em tragédia porque o sofrimento é confundido com perigo?

É fundamental que os policiais também sejam formados e capacitados para lidar com transtornos mentais. Eles precisam aprender a reconhecer sintomas, a desescalar situações de crise e a agir com empatia, não com arma em punho. Não se trata de transferir a função da saúde para a polícia, mas de criar protocolos integrados, em que a vida seja a prioridade.
Em países como o Canadá e a Noruega, já existem unidades mistas de resposta em saúde mental, nas quais profissionais de saúde acompanham os agentes de segurança em atendimentos de emergência. Por que não adaptar isso à nossa realidade?

Melhorar o atendimento público em saúde mental não se resume a abrir mais CAPS. É preciso fortalecer a rede de atenção psicossocial, garantir equipes completas, remunerar dignamente os profissionais, investir em atendimento comunitário, e, sobretudo, ouvir o território.
As escolas, as unidades de saúde, os CRAS e as igrejas precisam conversar. O cuidado em saúde mental começa muito antes da crise — começa quando alguém é visto, escutado, reconhecido como sujeito.

Sonho com um Brasil onde um jovem em sofrimento encontre, antes de uma jaula, uma escuta; antes de um rótulo, uma presença; antes da morte, uma rede que o acolha.
A saúde mental não é luxo, é direito. E enquanto for privilégio, continuaremos repetindo tragédias travestidas de fatalidade — quando, na verdade, são fracassos coletivos de cuidado.

 

Caminhos possíveis e propostas

  • Formar equipes de intervenção em crise com profissionais de saúde mental atuando junto às forças de segurança.
  • Capacitar policiais para lidar com surtos e situações de vulnerabilidade psíquica de forma não letal.
  • Fortalecer os CAPS e criar unidades 24h em todas as capitais e regiões metropolitanas.
  • Apoio matricial às equipes da Atenção Básica, garantindo formação em saúde mental e ações preventivas.
  • Integração entre saúde, educação, assistência social e cultura, reconhecendo que o sofrimento psíquico é multifatorial.
  • Políticas de cuidado familiar, com visitas domiciliares e acompanhamento de mães, adolescentes e idosos em vulnerabilidade.
  • Formação continuada de profissionais, com ênfase em práticas comunitárias, escuta qualificada e ética do cuidado.

 

Sugestões de leitura

  • D. W. Winnicott – O ambiente e os processos de maturação
    (Sobre o papel do ambiente no desenvolvimento emocional e no adoecimento.)
  • Frantz Fanon – Os condenados da terra
    (A dimensão política e colonial do sofrimento psíquico.)
  • Maria Clementina Souza & Paulo Amarante – Saúde mental e atenção psicossocial
    (Referência sobre a reforma psiquiátrica brasileira.)
  • Vera Iaconelli – Mal-estar na maternidade
    (Para pensar a sobrecarga emocional e social das mães vulneráveis.)
  • Michel Foucault – História da loucura
    (Um olhar crítico sobre a exclusão dos sujeitos ditos “loucos”.)

 

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