Por um Exército da Democracia: o Brasil que ainda precisa se libertar dos quartéis
Confesso
que ver generais sendo condenados e presos por envolvimento numa trama golpista
me despertou um sentimento ambíguo: um certo alívio histórico, mas também uma
profunda inquietação. Alívio porque, pela primeira vez, a farda não foi
sinônimo de impunidade. Inquietação porque isso revela o quanto ainda estamos
distantes de uma relação madura e democrática entre civis e militares no
Brasil.
Durante
décadas, as Forças Armadas brasileiras se viram como tutoras da nação —
e não como suas servidoras. Herdaram da ditadura não apenas o autoritarismo,
mas a convicção de que podem intervir sempre que o país “sai do rumo”. Mas quem
define esse rumo? A Constituição é clara: o poder emana do povo, e não
de quartéis.
É
impressionante que, mais de 30 anos depois da redemocratização, ainda não
tenhamos ouvido um pedido de desculpas pelos crimes da ditadura. Nenhuma
autocrítica, nenhum reconhecimento público das torturas, assassinatos, exílios
e censuras cometidas em nome de uma suposta “ordem”. E é justamente essa
ausência de memória e responsabilidade que explica parte do que vemos hoje: oficiais
nostálgicos de 1964, formados em academias que ainda cultuam o mito do
“salvador da pátria”.
Se não
querem ver seus membros presos, que não tentem dar golpes.
Que respeitem o poder civil, como ocorre em toda democracia madura.
E que compreendam, de uma vez por todas, que farda não é salvo-conduto moral.
O Brasil
precisa, com urgência, reformular suas Forças Armadas. Não apenas
punindo os culpados, mas repensando a própria estrutura militar, sua
formação e seu papel.
Hoje, nossos quartéis parecem mais alinhados a interesses geopolíticos
estrangeiros — sobretudo dos Estados Unidos — do que aos desafios reais do
país: segurança de fronteiras, proteção da Amazônia, defesa cibernética,
soberania energética e tecnológica.
Enquanto isso, seguem distantes do povo, das comunidades, das escolas, das
cidades que dizem proteger.
Reformar
as Forças Armadas significa, primeiro, democratizá-las por dentro.
Isso implica rever a formação oferecida nas academias militares, introduzir
disciplinas sobre direitos humanos, história política do Brasil e ética
republicana, e abrir espaço para o controle civil efetivo. O
Congresso precisa assumir um papel mais ativo na fiscalização orçamentária e
nas nomeações de comando.
Não podemos continuar com um país onde o Ministério da Defesa é, na prática,
dominado por quem deveria ser supervisionado por ele.
Também é
hora de repensar a doutrina militar brasileira, historicamente
subordinada à lógica da Guerra Fria e às estratégias norte-americanas.
Nossos soldados são treinados para combater inimigos internos — movimentos
sociais, indígenas, pobres, negros —, quando deveriam estar preparados para defender
o território, a soberania e o povo brasileiro.
Essa inversão é o coração do problema: o inimigo nunca esteve dentro do país,
mas nas estruturas que perpetuam dependência, desigualdade e submissão.
Eu sonho
com um Exército que sirva mais ao Brasil real — o das periferias, dos
sertões, dos trabalhadores, das mulheres e dos jovens que constroem este país
todos os dias — e menos a ideologias importadas ou nostalgias autoritárias.
Um Exército que construa pontes, estradas, hospitais e centros de defesa
tecnológica; que coopere com universidades e institutos científicos; que veja a
democracia não como ameaça, mas como expressão da maturidade nacional.
A
democracia não se impõe com fuzis. Ela se constrói com diálogo, justiça,
educação e memória.
E talvez seja esse o passo que ainda nos falta dar: fazer com que nossas Forças
Armadas finalmente compreendam que servir à pátria é obedecer ao povo —
e não mandar nele.
Propostas para uma reforma democrática das Forças
Armadas
- Educação democrática nas
academias militares: incluir disciplinas obrigatórias sobre
direitos humanos, história política e valores republicanos.
- Controle civil efetivo: o Ministério da Defesa deve
ser conduzido por civis e supervisionado de perto pelo Congresso.
- Revisão da doutrina de
“inimigo interno”, substituindo-a por uma visão voltada à
defesa da soberania, da Amazônia e das fronteiras.
- Integração com a sociedade
civil:
projetos sociais, tecnológicos e educacionais que aproximem os militares
da população.
- Autocrítica institucional e
compromisso com a verdade histórica: reconhecimento público dos crimes cometidos
durante a ditadura militar.
- Redefinição da política de
alianças internacionais, priorizando a soberania e a integração
sul-americana, e não a subordinação estratégica aos EUA.
Sugestões de leitura
- Celso Furtado – O mito do
desenvolvimento econômico
(Para compreender como a dependência econômica molda também a dependência militar.) - José Luís Fiori – O poder
global e a nova geopolítica das nações
(Sobre a inserção estratégica do Brasil no mundo e a importância da soberania.) - Elio Gaspari – A ditadura
envergonhada
(Um mergulho histórico no autoritarismo e suas permanências.) - Eduardo Costa Pinto – Militares
e poder no Brasil contemporâneo
(Análise crítica da atuação política das Forças Armadas pós-redemocratização.) - Hannah Arendt – Sobre a
violência
(Reflexão essencial sobre o poder, a obediência e o uso da força nas democracias.)
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