Quando o machismo mata: o Brasil que ainda não aprendeu a ser humano

 

Há notícias que nos atravessam como um golpe — não apenas pela brutalidade, mas pelo que revelam sobre o país que somos. Recentemente, dois crimes me deixaram profundamente abalado. Um servidor do Instituto Federal assassinou duas colegas de trabalho por não aceitar ser chefiado por mulheres. Outro, um cearense que vivia em São Paulo, atropelou a ex-companheira após o fim do relacionamento; ela sobreviveu, mas perdeu as pernas.

Diante dessas tragédias, me pergunto: o que está acontecendo conosco?
Como ainda é possível que, em pleno século XXI, a autonomia de uma mulher — no trabalho, no amor, na vida — seja vista como uma afronta?

Esses crimes não são exceções. São expressões cruéis de uma cultura patriarcal que insiste em sobreviver. O machismo não é apenas uma opinião atrasada: é um sistema de poder que ensina os homens a verem as mulheres como extensões de si mesmos — subordinadas, controláveis, descartáveis. E quando essa ilusão se quebra, o ódio aparece.

No caso do servidor do Instituto Federal, o que se revelou foi o machismo institucional, entranhado nas relações de trabalho. Ainda existem homens que não suportam ver mulheres liderando, decidindo, ocupando espaços de prestígio. A simples presença feminina no poder é suficiente para desestabilizar estruturas baseadas na dominação masculina. E, em vez de reverem seus próprios privilégios, esses homens reagem com violência — simbólica ou física.

Já no caso do homem que atropelou a ex-companheira, o que vemos é o feminicídio em sua forma mais nítida: o ódio à mulher que diz “não”. A recusa é intolerável para quem foi criado para acreditar que tem direito sobre o corpo e o destino de outra pessoa.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024), o Brasil registra um feminicídio a cada 6 horas. Em 2023, mais de 1.400 mulheres foram assassinadas por parceiros ou ex-parceiros. São números que escancaram a falência do nosso pacto civilizatório.

E o mais assustador é que boa parte desses crimes é anunciada. Antes da violência extrema, há o controle, o ciúme, as ameaças, as humilhações, o isolamento. O machismo raramente começa com o sangue — ele começa com o silêncio.

Mas o que podemos fazer diante disso?
Primeiro, é preciso parar de naturalizar a violência. Ela não é “crime passional”, não é “falta de controle”, não é “surto”. É escolha, produto de uma educação que ensina os meninos a não chorar, a não ouvir “não”, a medir seu valor pelo poder que exercem sobre os outros.
Enquanto a masculinidade for construída sobre o domínio, as mulheres continuarão morrendo.

Precisamos investir em educação de gênero nas escolas, desde cedo, ensinando respeito, empatia, igualdade e autonomia. Precisamos fortalecer as delegacias e casas de acolhimento para mulheres, garantir proteção rápida e efetiva para quem denuncia, e ampliar o acesso à assistência psicológica e jurídica.
Mas isso não basta se os homens não se transformarem.

A mudança começa dentro de casa, na forma como criamos nossos filhos, na linguagem que usamos, nas piadas que reproduzimos, nos silêncios que mantemos. Cada vez que rimos de um comentário machista, que minimizamos o ciúme, que culpamos a vítima, alimentamos o mesmo sistema que, um dia, empurra alguém a matar.

A violência contra a mulher não é um problema das mulheres. É uma tragédia masculina — nascida do medo de perder o controle e da incapacidade de conviver com a igualdade.

O Brasil precisa, mais do que leis, de educação emocional, ética e afetiva.
Precisamos ensinar os homens a serem humanos — a suportar a vulnerabilidade, a perda, o “não”.
Porque a verdadeira força não está em dominar, mas em respeitar.
E a verdadeira masculinidade não é a que fere, mas a que cuida.

 

Sugestões de ações e políticas públicas

  • Educação de gênero nas escolas, com programas que abordem masculinidade, respeito e prevenção da violência.
  • Formação continuada de servidores públicos, especialmente na segurança, saúde e educação, para reconhecer sinais de violência doméstica e agir com acolhimento.
  • Fortalecimento da rede de proteção, com ampliação de casas-abrigo, centros de referência e canais de denúncia.
  • Criação e manutenção de espaços de Biodança e Terapia Comunitária, voltados ao fortalecimento emocional, ao vínculo afetivo e à reconstrução da autoestima — tanto para mulheres vítimas de violência quanto para homens em processo de reeducação emocional.
  • Campanhas permanentes de conscientização, voltadas também para homens, sobre o ciclo da violência e o papel da responsabilidade afetiva.
  • Apoio psicológico e reeducação para agressores, como política pública preventiva, não apenas punitiva.
  • Incentivo a projetos culturais e comunitários que trabalhem gênero, empatia e convivência pacífica em bairros e escolas.

 

Leituras recomendadas

  • bell hooks – O feminismo é para todo mundo
    (Reflexão clara e acessível sobre igualdade e desconstrução do machismo.)
  • Rita Segato – La guerra contra las mujeres
    (Análise poderosa sobre a violência de gênero como projeto de poder.)
  • Heleieth Saffioti – Gênero, patriarcado, violência
    (Estudo clássico sobre as estruturas sociais da dominação masculina.)
  • Mia Couto – E se Obama fosse africano?
    (Crônicas que falam sobre poder, empatia e humanidade.)
  • Djamila Ribeiro – Quem tem medo do feminismo negro?
    (Sobre interseccionalidade, raça e os novos caminhos da luta feminista.)

 

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