Trabalhar até adoecer? O delírio é outro
Quando
ouvi Luis Felipe Pondé afirmar, em entrevista ao Jornal O POVO de ontem, que “o
Brasil delira” ao discutir a redução da jornada de trabalho de 6x1 para 4x3,
pensei que talvez ele viva em um país paralelo — um onde as pessoas têm tempo,
saúde e lazer. No Brasil real, o que enlouquece não é trabalhar menos: é trabalhar
demais.
De acordo
com a PNAD Contínua (IBGE, 2023), o brasileiro trabalha, em média, 39,5
horas semanais, mas essa média esconde uma realidade desigual: muitos
ultrapassam 50 horas, principalmente em setores como comércio, serviços e
transporte.
Entre os informais — que representam quase 40% da força de trabalho —, a
jornada é ainda mais longa e sem direitos: não há férias, descanso semanal, nem
segurança.
O
resultado é visível nas estatísticas de saúde. Dados do Ministério da Saúde
(2022) mostram um aumento de 27% nos afastamentos por transtornos
mentais em relação a 2018. A Organização Mundial da Saúde estima que
o Brasil é o país mais ansioso do mundo e o segundo em casos de depressão
na América Latina.
Trabalhamos muito, descansamos pouco — e adoecemos rápido.
Quando
Pondé diz que “um país pobre querendo trabalhar menos é um delírio”, ele ignora
justamente essa dimensão humana e social do trabalho.
A pobreza não se supera com exploração; supera-se com educação,
produtividade e dignidade.
O problema não é o brasileiro querer trabalhar menos — é o sistema econômico
querer trabalhar o brasileiro até o limite.
A jornada
de 6x1, tão comum no comércio e na indústria, é uma herança de um tempo em que
o corpo do trabalhador valia menos que a máquina. É a lógica do “quanto mais
tempo, mais lucro” — uma visão ultrapassada, desmentida por estudos
contemporâneos.
Na Islândia, uma experiência nacional de redução da jornada para quatro
dias mostrou aumento de produtividade e queda nos índices de estresse.
No Reino Unido, empresas que adotaram o mesmo modelo relataram crescimento
de 35% na satisfação e retenção de funcionários.
Enquanto
isso, no Brasil, o trabalhador ainda é culpado por não ser “produtivo o
bastante”, mesmo ganhando salários médios de R$ 2.100 (IBGE, 2024) e
enfrentando jornadas extenuantes em transportes precários, sob calor, violência
e pressão.
Chamar esse povo de “preguiçoso” é mais que elitismo — é violência simbólica.
A fala de
Pondé reproduz o velho discurso das elites brasileiras, que sempre se viram
como donos do tempo alheio. É o mesmo raciocínio escravista travestido de
moral: o pobre deve trabalhar até morrer, enquanto os privilegiados “pensam o
país”.
Mas o Brasil que acorda às 5h e volta às 22h não delira — sobrevive.
A luta
pela redução da jornada é, na verdade, uma luta pelo tempo de viver.
Tempo para estar com a família, estudar, cuidar da saúde, participar da vida
comunitária.
Tempo para não se tornar apenas força de trabalho.
Um país
que valoriza o descanso é um país que valoriza a vida.
O verdadeiro delírio não está em querer trabalhar quatro dias por semana.
O delírio é achar que trabalhar até adoecer é sinal de progresso.
Sugestões de políticas públicas
- Implementar projetos-piloto
de jornada 4x3 em setores públicos e privados, com monitoramento de
produtividade e bem-estar.
- Criar campanhas de
prevenção ao burnout e políticas de saúde mental voltadas aos
trabalhadores.
- Reforçar a fiscalização
das jornadas ilegais e das condições de trabalho insalubres.
- Promover programas de
redistribuição de renda e qualificação profissional, reduzindo a
necessidade de múltiplos empregos.
- Incentivar empresas que
adotem modelos mais humanos de organização do tempo.
Leituras recomendadas
- Ricardo Antunes – O
privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital
(Análise do trabalho precarizado e da alienação contemporânea.) - Byung-Chul Han – Sociedade
do cansaço
(Sobre o excesso de desempenho e a autossuperexploração.) - David Graeber – Bullshit
Jobs
(Reflexão sobre a perda de sentido do trabalho moderno.) - André Gorz – Metamorfoses
do trabalho
(Crítica à centralidade do trabalho e defesa do tempo livre como valor.) - Maria da Graça Druck – A
precarização social do trabalho no Brasil
(Estudo sociológico sobre informalidade, terceirização e adoecimento laboral.)
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