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Mostrando postagens de outubro, 2025

PENSAR O BRASIL COM OS PRÓPRIOS PÉS

  Ler o primeiro volume de Consciência e Realidade Nacional , de Álvaro Vieira Pinto , foi, para mim, uma espécie de reencontro com uma pergunta antiga: o que significa pensar o Brasil a partir de nós mesmos? Não da Europa, nem dos Estados Unidos, nem das abstrações universalistas, mas do chão real, histórico e contraditório do país. A leitura não é leve — é um mergulho filosófico, denso, mas profundamente necessário. Desde as primeiras páginas, senti que Vieira Pinto não queria apenas elaborar uma teoria; ele queria convocar . Sua escrita carrega um tom de urgência, um desejo de que o pensamento brasileiro se reconheça como sujeito de sua própria história. Ele fala de “consciência nacional” não como um slogan patriótico, mas como um processo existencial e coletivo: a passagem da alienação à lucidez, do ser pensado ao ser que pensa. O que mais me marcou foi sua insistência em afirmar que a consciência do povo é um campo de luta . Ele nos mostra que o subdesenvolvimento não é ap...

A TRAVESSIA DA NOSTALGIA

  Ao abrir Nostalgia , de Mircea Cărtărescu , tive a sensação de mergulhar em um território híbrido, em que a literatura não se contenta em narrar, mas se expande como sonho, memória e delírio. Não é um romance linear, tampouco um livro de contos comuns. É como entrar em um labirinto de espelhos, em que cada história reflete pedaços de outras, e todas juntas refletem algo de mim mesmo. Logo nas primeiras páginas, senti a atmosfera densa, carregada de imagens oníricas, que me lembraram os momentos em que a infância se mistura ao pesadelo. Cărtărescu escreve como quem convoca fantasmas da memória coletiva e íntima, criando cenas em que realidade e imaginação deixam de ser opostas. Em vários trechos, senti aquela vertigem em que não se sabe se estamos acordados ou dentro de um sonho. O conto “O Ruletista” , por exemplo, me deixou atônito: um homem que aposta sua vida repetidas vezes em um jogo mortal, até que sua própria existência se torne espetáculo. Ao lê-lo, pensei na obsessão...

CAMINHAR COMO PENSAMENTO VIVO

Ler Caminhar, uma filosofia , de Frédéric Gros , foi como desacelerar um pouco o ritmo acelerado do meu próprio cotidiano. Não é um manual de caminhadas, tampouco um guia de trilhas. É, antes, uma meditação sobre o que significa caminhar como ato existencial , como gesto que rompe com a pressa do mundo moderno e abre espaço para pensar, sentir e simplesmente ser. Enquanto lia, me vi lembrando das minhas próprias caminhadas: os trajetos curtos pelas ruas da cidade, os passeios sem destino fixo, as caminhadas mais longas que fiz em busca de silêncio. Gros mostra que caminhar não é apenas deslocar-se de um ponto a outro, mas um ato que nos liberta das lógicas da produtividade e da eficiência. No caminhar, não há “ganho de tempo” — há, ao contrário, um perder-se nele. O autor convoca figuras como Nietzsche, Rousseau, Thoreau, Kant e outros pensadores que fizeram da caminhada uma prática filosófica. E, ao ler sobre eles, percebi como o caminhar pode ser entendido como uma forma de resis...

A VITÓRIA DE MILEI E O ESPELHO QUE SE ABRE PARA NÓS

  Quando soube da vitória de Javier Milei nas eleições legislativas da Argentina, senti um misto de perplexidade e reconhecimento. Perplexidade porque é sempre duro assistir à ascensão de discursos radicais, carregados de ressentimento e de uma promessa de ruptura que parece mais vingança do que construção. Reconhecimento porque, ao olhar para a Argentina, vejo também reflexos do que vivemos no Brasil e em outros países da América Latina: o esgotamento de modelos políticos tradicionais, a frustração com promessas não cumpridas e o apelo cada vez maior a líderes que se apresentam como “anti-sistema”. Ao acompanhar o discurso de Milei, não consigo deixar de pensar na sua força performática. Ele se coloca como alguém que fala “sem filtro”, que diz o que outros não ousam dizer. Isso seduz uma parte significativa da população que se sente excluída, ignorada ou traída pelos partidos tradicionais. A vitória dele, ao ocupar espaço legislativo, mostra que não se trata apenas de um gesto d...

ENTRE FASCÍNIO E DESIGUALDADE

  Ler Ladislau Dowbor sempre me coloca diante de um dilema íntimo: o da esperança diante das novas possibilidades e o da inquietação frente às desigualdades que se aprofundam. Com Os Desafios da Revolução Digital , não foi diferente. Ao longo das páginas, senti como se ele abrisse uma lente crítica sobre algo que, no cotidiano, muitas vezes naturalizamos — o mundo digital que nos envolve em cada gesto. O que mais me chamou atenção foi a forma como Dowbor traduz a complexidade da revolução tecnológica em linguagem acessível, mas sem perder densidade. Ele mostra como as tecnologias digitais — big data, inteligência artificial, plataformas digitais — não são apenas ferramentas neutras. Elas estão inseridas em uma lógica de poder, de concentração de riqueza e de captura da subjetividade. Não é apenas o mercado que muda; é o próprio tecido da vida social. Enquanto lia, pensava em meu próprio cotidiano: meu celular que sabe onde estive, os anúncios que parecem adivinhar meus desejos,...

ENTRE A DEMOCRACIA E A OLIGARQUIA

  Ler Para uma sociologia dos partidos políticos na democracia moderna , de Robert Michels , foi para mim uma experiência ambivalente: ao mesmo tempo um mergulho lúcido na realidade dos partidos e um soco no estômago diante daquilo que acreditava ser a promessa da democracia. Michels me mostrou, sem rodeios, que por trás do ideal de participação popular existe uma força quase inevitável: a tendência dos partidos a se burocratizarem e se tornarem oligárquicos. Ao longo da leitura, percebi que o autor não está apenas descrevendo um detalhe da política, mas desmontando uma ilusão coletiva. O que Michels formula como a “lei de ferro da oligarquia” é algo que ecoa na minha própria vivência como cidadão: sempre que um grupo se organiza, seja um partido, sindicato ou associação, cedo ou tarde emerge uma liderança fixa, que concentra poder e tende a se distanciar da base. O ideal de participação direta vai se transformando em representação distante, às vezes autoritária, sustentada por ...

RESGATAR A FUNÇÃO SOCIAL DA ECONOMIA: MINHA LEITURA DE LADISLAU DOWBOR

  Ler Ladislau Dowbor é sempre um exercício de deslocamento: ele nos obriga a tirar os olhos da superfície imediata da economia — gráficos, índices, promessas de crescimento — e mergulhar naquilo que de fato deveria nos interessar: a vida das pessoas . Quando peguei em mãos Resgatar a função social da economia , não senti que estava diante de um livro técnico, mas diante de um chamado. Um chamado para pensar o lugar da economia não como um fim em si mesma, mas como instrumento a serviço da coletividade. Ao longo das páginas, encontrei argumentos claros e contundentes: a economia, sequestrada pelos interesses financeiros, deixou de servir à sociedade. O resultado é o que vemos no Brasil e no mundo: concentração absurda de renda, precarização do trabalho, destruição ambiental e uma política capturada por elites que confundem seus lucros privados com “interesse nacional”. Dowbor mostra como essa lógica estreita nos adoece, nos empobrece e, sobretudo, nos rouba o futuro . Fiquei e...

O CAFÉ ESQUECIDO

  Acordei atrasado. O relógio piscava 7h48 e o celular vibrava sobre a mesa com notificações que eu não queria ler. Vesti a primeira roupa que encontrei, calça amarrotada, camiseta de banda já quase sem estampa. Desci as escadas com a pressa de quem está sempre devendo tempo. Na padaria da esquina, o cheiro de pão quente me envolveu como um convite à calma. Pedi um café e um pão na chapa. O balcão de mármore estava frio sob minhas mãos. Ao meu lado, um senhor folheava o jornal com a lentidão de quem ignora os ponteiros. Meu café chegou. Preto, forte, soltando fumaça. Peguei o pão, mastiguei devagar. Pela vidraça, vi a rua ainda acordando: crianças com mochilas grandes demais, um cachorro farejando o poste, a dona do armarinho abrindo a porta de ferro. Por alguns minutos, não existia mais nada além daquele café. Não existia a pressa, nem os prazos, nem as mensagens esperando resposta. Só eu, o calor da xícara, o barulho suave da manteiga estalando no pão. Terminei, deixei as...

VERGONHA E A POLÍTICA DO AFETO

  Falar de vergonha é, para mim, falar de um território íntimo, um chão instável onde se confundem corpo, memória e linguagem. A vergonha me atravessa como um afeto ambíguo: ela é tanto um sinal de pertencimento — quando me mostra que não correspondi às expectativas do outro — quanto um corte profundo, que me expulsa do espaço social, como se meu corpo não tivesse mais lugar ali. Cresci aprendendo que a vergonha devia ser escondida, abafada, mas descobri na vida adulta que ela também pode ser uma chave: se não a escondo, se a trago à luz, ela pode se tornar política, relacional, até mesmo libertadora. Percebo que a política do afeto começa justamente nesse ponto em que a vergonha deixa de ser um peso silencioso e se transforma em um campo de encontro. Quando ouso dizer “eu sinto vergonha”, abro espaço para que outros digam: “eu também”. Essa partilha cria uma comunidade frágil e potente, que rompe o isolamento. Não é à toa que movimentos sociais — do feminismo às lutas LGBTQIA+...