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Mostrando postagens de junho, 2025

Fomos abandonados à própria sorte: a condução trágica do Estado brasileiro na pandemia

  Nunca vou esquecer o silêncio. Aquele silêncio das ruas vazias, das UTIs lotadas, das covas abertas em série. Um silêncio que não era paz — era abandono. E nesse silêncio, ficou claro o que muitos de nós já sabíamos, mas ainda recusávamos a ver: o Estado brasileiro falhou conosco. Falo como cidadão, como alguém que perdeu amigos, familiares(meu pai) e certezas. Não foi só um vírus que matou mais de 700 mil brasileiros — foi a irresponsabilidade, o negacionismo e o desmonte deliberado das estruturas públicas de cuidado. Enquanto os números subiam, o governo fazia piada. Enquanto profissionais de saúde adoeciam de exaustão, o presidente promovia aglomerações. Enquanto os cientistas alertavam, os gestores hesitavam — ou pior: mentiam.   O negacionismo institucionalizado Ver o chefe de Estado brasileiro desencorajar o uso de máscaras, sabotar vacinas, desacreditar médicos e defender “tratamentos precoces” sem evidência científica foi, para mim, um dos capítulos mais...

Produtividade e a Impossibilidade de Parar (Um ensaio crítico entre a Psicologia e a Sociologia)

  Não sei exatamente quando começamos a sentir culpa por descansar, mas ela já não me parece uma exceção — parece regra. Tirar um dia de folga   parece transgressão. Silenciar notificações, um luxo. Dormir à tarde, um crime. Vivemos em um tempo em que parar virou sinônimo de fraqueza, descansar é visto como improdutivo, e ralar até o limite se tornou um elogio disfarçado de estilo de vida. A questão é que não estamos sós nisso. Estamos todos inseridos numa lógica que fetichiza o trabalho e sequestra nosso tempo com a promessa de sucesso. Como alguém que tenta viver e refletir esse tempo, me pergunto: quando foi que trabalhar virou a única forma de existir socialmente? A produtividade como moral A sociedade atual — como já apontavam sociólogos como Max Weber e Richard Sennett — fundou sua moral sobre a produtividade. Não basta trabalhar: é preciso produzir, crescer, entregar mais rápido. O tempo do trabalho invade o tempo da vida. As pausas viram procrastinação. ...

O teatro da artificialidade: minha experiência com “O Segundo Ato”, de Quentin Dupieux

  O “segundo Ato”, filme do provocador francês Quentin Dupieux , não é um filme fácil — nem quer ser. É um espelho quebrado onde cada pedaço reflete, distorce e ridiculariza nossa obsessão por performance, aparência e controle narrativo. Assistir a um filme de Dupieux é sempre um mergulho no absurdo — mas nesse, senti que ele resolveu brincar com o próprio cinema, com o teatro da vida e com a nossa sede insaciável por verdades imediatas. O filme começa como uma comédia romântica banal, com clichês propositalmente exagerados. Mas logo percebemos que os personagens estão atuando dentro de um filme dentro do filme, o que abre espaço para reflexões metalinguísticas que me lembraram Godard em seu período mais irônico , e também Kaufman em Adaptação , com uma camada existencial a mais: ninguém ali sabe se está realmente sentindo ou apenas representando. Um teatro de máscaras Dupieux não faz críticas brandas. Ele esculacha com o politicamente correto esvaziado , com a lacração aut...

Vozes que incomodam: por que defendo o Plebiscito Popular

  Não é de hoje que ouço críticas — muitas vezes raivosas — sobre a proposta de um Plebiscito Popular no Brasil. Quando os movimentos sociais se organizam para consultar o povo diretamente, há sempre uma reação automática que questiona sua validade, sua “imparcialidade”, sua “legalidade”. Mas o que está por trás dessas reações é, na verdade, um medo profundo: o medo da participação popular real. Falo aqui como alguém que acredita na democracia, não como um sistema de representação fria e distante , mas como um campo de disputa viva, onde o povo tem o direito — e o dever — de intervir nos rumos do país. Quando vejo movimentos como o MST, as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, sindicatos, coletivos estudantis e organizações periféricas defendendo o plebiscito, vejo uma tentativa legítima de romper com a lógica elitista do poder político que, mesmo depois da redemocratização, continua excluindo milhões da tomada de decisão. O que é, afinal, um plebiscito popular? Não se ...

O Nordeste como campo de luta simbólica

  Do ponto de vista sociológico e antropológico , o Nordeste é território de disputas de significados. É onde a cultura popular resiste à mercantilização . Onde o catolicismo se mistura ao candomblé, onde o forró, o repente, o cordel e o maracatu continuam pulsando, apesar da invisibilização midiática. É também espaço onde as desigualdades se territorializam : as periferias de Salvador, Fortaleza e Recife são marcadas por violências estruturais que não se explicam apenas pela “pobreza”, mas sim por um projeto histórico de exclusão racial, de gênero e de classe . E é por isso que o Nordeste também é lugar de invenção política : do MST, das ocupações urbanas, das comunidades quilombolas, dos povos indígenas que seguem resistindo. É aqui que a arte vira denúncia. Que a fé vira luta. Que a memória vira farol. Entre o preconceito e a potência Quantas vezes ouvi alguém dizer que nordestino “fala errado”, “é preguiçoso”, “só vota mal”? Quantas vezes precisei explicar que não somo...

Entre o asfalto e o mangue: a dor de ver a Sabiaguaba ameaçada

  Cruzar a CE-010 — essa rodovia que liga Fortaleza ao Eusébio — me deixa com um nó na garganta. Não por ser uma via perigosa, embora o seja em muitos trechos. Mas por algo mais profundo, mais silencioso, mais perverso: a constatação de que estamos destruindo o que nos resta de sagrado em nome de um progresso que não respeita nem o tempo, nem a vida. Falo da Sabiaguaba , esse santuário ecológico à beira do urbano, onde ainda sobrevivem manguezais, dunas, rios, mata atlântica e espécies que só existem ali. Falo do que já foi um território de pesca artesanal, de benzedeiras, de redes estendidas ao sol, de silêncio vivo — e que hoje se vê encurralado por condomínios de luxo, espigões à beira-rio, e carros que aceleram sobre a terra sem culpa, porque ali foi colocada uma estrada que parece não ter parado para perguntar “quem vive aqui?” . A CE-010 nunca foi apenas uma estrada. É um marco da violência territorial camuflada sob o discurso da mobilidade . Quando ela foi aberta, muit...

Entre sombras e alvoradas: Raara Rodrigues canta Nana Caymmi no CCBNB

  Hoje, entre o peso do mundo e a leveza que a arte nos empresta de vez em quando, encontrei abrigo na voz de Raara Rodrigues, que subiu ao palco do Centro Cultural Banco do Nordeste para homenagear Nana Caymmi dentro do projeto Jazz em Cena . E ali, diante de um público silenciado pelo encantamento, Raara não apenas cantou Nana — ela atravessou sua sombra, colheu seus silêncios, soprou nova alma no que já era eterno . Desde os primeiros acordes, percebi que não estava diante de uma intérprete comum. Havia em Raara um respeito reverente pela densidade de Nana , mas também uma ousadia cuidadosa em reinventá-la com o próprio corpo e a própria memória. A cada nota, ela parecia costurar a música com fios de vivência — suas pausas eram tão eloquentes quanto seus agudos, seus olhares diziam o que os arranjos apenas sugeriam. “O que é que a baiana tem?” perguntou o piano, e a resposta veio no timbre cheio de história, de dor e de desejo. Quando Raara cantou “Resposta ao tempo”, vi pes...

Quando o riso fere: o caso Leo Lins e a banalização da crueldade como entretenimento Um olhar pessoal, psicanalítico e sociológico

  Há dias venho tentando organizar o que senti ao assistir ao vídeo de Leo Lins fazendo piada com a doença de Preta Gil — que, como todos sabem, está em tratamento contra um câncer. Eu, que sempre defendi o humor como ferramenta de crítica, liberdade e provocação, me peguei em silêncio, constrangido. Mas era mais que isso: era repulsa . Não foi apenas falta de empatia. Foi violência travestida de piada , encenada com o sadismo de quem sabe exatamente onde atingir, e mais ainda: de quem sabe que será aplaudido por isso. Leo Lins não faz humor. Ele lucra com a humilhação alheia , escolhendo sempre alvos vulneráveis: pessoas negras, com deficiência, em tratamento de doenças, mulheres, nordestinos, povos indígenas. E a plateia, por vezes ensandecida, aplaude. O que isso diz sobre nós? O riso como gozo perverso Do ponto de vista da psicanálise, poderíamos dizer que há algo de gozo perverso nesse tipo de espetáculo. Lacan dizia que o gozo (jouissance) se dá muitas vezes contra...

Entre Ecos e Espelhos: O Que Perlaborei com Lizana Dallazen Uma resenha crítica e afetiva sobre “A perlaboração da contratransferência”

  Confesso que abri o livro de Lizana Dallazen — A perlaboração da contratransferência — com uma expectativa tímida e uma inquietação conhecida: a de entrar em território onde o sujeito clínico não é apenas o paciente, mas, sobretudo, o analista. E ali, nas primeiras páginas, percebi que não estava diante de mais um texto técnico sobre contratransferência, mas de uma escrita que atravessa, expõe e interpela . A autora mergulha no conceito de perlaboração, que em Freud aparecia como Durcharbeitung — o trabalhar através, o metabolizar psíquico — e propõe, com coragem teórica e sensibilidade clínica, estendê-lo à contratransferência. O que significa isso? Que não basta reconhecer o que sentimos enquanto escutamos o outro — é preciso elaborar o que o outro desperta em nós, continuamente. Uma escrita que sustenta o desconforto O que me provocou foi a maneira como Lizana sustenta a ideia de que a contratransferência não é apenas um "efeito colateral", mas uma ferramenta, um...

Il tempo nascosto nella torre

  Nel cuore di un vecchio borgo in Toscana, c’era una torre che nessuno osava più salire. Non per paura, ma per rispetto. Si diceva che lì dentro vivesse il tempo — non il tempo dei minuti e delle ore, ma il tempo che ricorda . Ogni mattina, la signora Livia, ottantasette anni e un sorriso che sapeva di pane caldo, si sedeva sulla panchina di fronte alla torre con il suo gatto Tito. Guardava in alto, come se aspettasse qualcosa. O qualcuno. «Ci vive ancora?» le chiedevano i bambini. «Chi?» «Il tempo.» Lei sorrideva, accarezzava Tito e rispondeva: «Solo se lo chiami con gentilezza.» Un giorno, un ragazzo di città — Lorenzo, fotografo di sogni dimenticati — arrivò al villaggio. La torre lo attirò come un’eco. «Posso salire?» chiese. «Puoi provare», disse Livia. «Ma non portare l’orologio. Il tempo, lì dentro, non ama concorrenti.» Lorenzo salì. Ad ogni gradino, sentiva qualcosa cambiare: il rumore del paese svaniva, il battito del cuore rallentava, le immagini nella men...

Whispers of the Earth

  Beneath the sky's unending dome, I walk the edge of sea and stone, Where winds remember every name That time has tried to leave unknown. The stars don’t speak, but still they shine, Like ancient truths in modern minds. And trees, with roots so deep, still know What we forget as years unwind. A river hums a quiet song, Of all who passed and moved along— Their echoes dancing in the mist, Their dreams still clenched in nature’s fist. I ask the dusk, “What’s mine to do?” It answers with a shade of blue, A silence wrapped in bird-wing sighs— A hush that teaches how to rise.     For though the world is loud and torn, And hearts are bruised and minds are worn, Still in the soil, the hope is sown— That we are never quite alone.

Entre impostos, privilégios e derrotas: quando o povo paga o preço da política por alguém que ainda acredita na democracia, mas desconfia dos seus donos

  Ao acompanhar as notícias sobre a votação no Congresso, senti um misto de vergonha, frustração e uma velha conhecida: a sensação de que, mais uma vez, o povo foi empurrado para o fim da fila . A proposta do Governo Federal era clara e justa: isentar do Imposto de Renda as pessoas que ganham até cinco mil reais mensais — uma faixa onde estão milhões de brasileiros sufocados por boletos, inflação, aluguel e um custo de vida que já não cabe no salário. Em contrapartida, haveria aumento na alíquota do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) , algo que, embora discutível, ao menos apontava para uma lógica distributiva: tirar um pouco mais das transações financeiras para aliviar o bolso de quem vive do trabalho. Mas o Congresso disse não. Mais do que isso: humilhou a proposta , engavetou a isenção e rejeitou o reajuste do IOF. E, no mesmo movimento, aprovou uma PEC para aumentar o número de parlamentares — como se já não tivéssemos um Legislativo caro, lento e muitas vezes inse...