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Mostrando postagens de setembro, 2025

A terra tudo come: um ritual dançado no coração de Fortaleza

  Hoje, no palco do Centro Cultural Banco do Nordeste Fortaleza , o dançarino e performer Jade Pereira entregou ao público uma experiência que não se esgota na palavra “espetáculo”. A terra tudo come é, antes de tudo, um ritual. Um atravessamento que convoca o corpo sertanejo, o povo “caboclo” que sai do interior para a capital, e que traz consigo memórias, dores, resistências e ancestralidades que não podem ser apagadas. A travessia ritual Jade não dança apenas: ele conta. Cada gesto de sua performance se confunde com uma narrativa oral herdada, como se o corpo fosse arquivo e voz, voz que retorna às histórias familiares transmitidas no quintal, na beira do rio, nas cozinhas do sertão. A dança se faz contação dançada , onde o ritmo não é só movimento, mas eco das pisadas que o povo sertanejo inscreveu no chão do semiárido. Afroindígena: retomada pela memória A performance toca fundo nas marcas afroindígenas da nossa formação cultural. Ao deslocar essas raízes para o pal...

O avesso da Psicanálise: minhas leituras do Seminário 17 de Lacan

  O Seminário 17 de Lacan, O avesso da Psicanálise , não é para mim apenas um texto teórico, mas uma travessia incômoda. É um livro que me obriga a olhar para além das paredes da clínica, para os dispositivos sociais e políticos que estruturam nosso mal-estar. Cada página me faz pensar não só no inconsciente, mas também na história do Brasil, na economia global, na forma como o poder circula e nos captura. Lacan nos apresenta, nesse seminário, os quatro discursos : o do mestre, o da histérica, o do analista e o universitário. Ler isso em primeira pessoa é reconhecer como esses discursos atravessam a minha vida cotidiana. O discurso do mestre aparece quando me sinto dominado por figuras de autoridade, quando minha palavra é reduzida ao lugar de resposta. O da histérica, quando percebo que é a própria insatisfação — o “não é isso!” — que me move a questionar e a desejar. O discurso do analista, quando consigo sustentar o vazio, deixando o outro falar, sem impor respostas rápidas. E...

Entre devoção, culpa e satisfação vicária: minhas leituras de Melanie Klein

  A obra de Melanie Klein sempre me atravessou não como um manual técnico, mas como um campo vivo, onde minhas próprias ambivalências ganham forma. Ao mergulhar em seus textos, encontrei um mapa das forças subterrâneas que movem nossa devoção a causas, a insistência da culpa e aquela estranha satisfação que sentimos ao viver pelo outro, como se fosse possível reparar o mundo por procuração. Quando penso na devoção a causas , percebo como Klein nos alerta para a raiz pulsional desse movimento. Não é apenas altruísmo, é também elaboração da agressividade. A devoção surge como um gesto de reparação: ao me entregar a uma causa — seja ela política, religiosa ou pessoal —, busco reparar danos internos, projetados no mundo externo. É como se o movimento de militância fosse também uma forma de costurar objetos internos despedaçados. Confesso que muitas vezes me percebo nesse lugar, devoto não apenas ao “outro”, mas a um ideal que protege minhas próprias partes frágeis. A culpa , em Kle...

A ONU ainda serve? Reflexões sobre sua utilidade e possíveis reformas

  Não consigo me esconder atrás de uma falsa neutralidade diante da pergunta: qual a utilidade da ONU hoje? Cresci ouvindo que a Organização das Nações Unidas era o espaço máximo de diálogo internacional, o fórum que havia nascido das cinzas da Segunda Guerra para impedir novos horrores. Mas, olhando para o mundo em chamas — Gaza devastada, Ucrânia em guerra, golpes na África, crises migratórias, colapso climático —, me pergunto: de que tem servido a ONU, afinal? Na prática, vejo uma instituição paralisada por sua própria arquitetura. O Conselho de Segurança é o exemplo mais evidente: cinco países com poder de veto — EUA, Rússia, China, França e Reino Unido — ditam os rumos do planeta. Em vez de garantir segurança coletiva, transformaram o Conselho em trincheira de seus interesses nacionais. Basta um veto, e genocídios, ocupações e violações de direitos humanos seguem sem condena. O resultado é a sensação de impotência: a ONU denuncia, emite relatórios, faz declarações, mas pouc...

Da soberania digital à soberania em IA: um desafio que nos atravessa

  Esse tema não me parece distante, abstrato ou reservado apenas a técnicos de laboratório. Quando penso em soberania digital, penso no meu próprio cotidiano: minhas conversas circulam em aplicativos estrangeiros, meus dados são armazenados em nuvens que não pertencem ao meu país, minhas buscas são processadas por algoritmos que obedecem a interesses corporativos que não dialogam com minha realidade. Sinto, então, a fragilidade de um corpo coletivo que perdeu o controle sobre sua própria pele informacional. Mas hoje o debate vai além. Já não se trata apenas de soberania digital no sentido de proteger dados, redes e infraestruturas. Entramos numa nova etapa, mais radical e perigosa: a da soberania em Inteligência Artificial . A corrida pela IA não é apenas tecnológica, é geopolítica. Quem detém as maiores plataformas de modelos de linguagem, quem controla os chips de alta performance, quem dita os padrões éticos globais, passa a ditar também as condições do trabalho, da educação, ...

A paz do cemitério: críticas ao plano Trump-Netanyahu para Gaza

  Li com perplexidade a reportagem, publicada no Jornal O POVO de hoje, que anuncia Donald Trump e Benjamin Netanyahu como artífices de um novo “plano de paz” para Gaza. Digo perplexidade porque, ao me debruçar sobre os termos apresentados, não vejo paz: vejo apenas a velha lógica da imposição militar travestida de diplomacia. O vocabulário é sedutor — “força de estabilização internacional”, “comitê de transição”, “libertação de reféns” — mas, ao fundo, o som que ecoa é o mesmo: o da guerra justificada como remédio definitivo. Sinto-me invadido por uma sensação de déjà-vu. Quantas vezes já não ouvimos fórmulas parecidas, prometendo o fim da violência na Palestina? No entanto, a proposta segue ignorando o elemento central: o direito de autodeterminação do povo palestino. Quando Netanyahu declara que Gaza “nunca mais representará uma ameaça para Israel”, ele não fala de convivência ou reconhecimento; fala de subjugação, de aniquilação da política do outro. E Trump, posicionado como...

Eduardo Bolsonaro e a Ala Neofascista que se Afasta da Faria Lima

  Escrevo este texto   porque não quero me esconder atrás de análises frias ou acadêmicas demais. Falo como alguém que observa, com desconforto e inquietação, os rumos da política brasileira. Para mim, Eduardo Bolsonaro representa algo que vai além de um simples deputado: ele é a face visível de uma ala que radicaliza o neofascismo e, nesse processo, se distancia daquilo que poderíamos chamar de “racionalidade capitalista da Faria Lima”. A Faria Lima, com todo o seu universo de fundos de investimento, empresários e lobistas engravatados, nunca foi exatamente democrática — mas sempre operou dentro de uma lógica pragmática, de cálculo e manutenção do sistema. O que Eduardo encarna é diferente: um discurso incendiário, voltado para mobilizar afetos violentos, ressentimentos e a criação de inimigos internos. Se a Faria Lima quer previsibilidade, Eduardo aposta no caos. Observo com clareza esse afastamento. De um lado, banqueiros e empresários pressionam por estabilidade fiscal...

A volta ao mundo em 80 dias de Isadora e Marina

 Isadora ajustou os óculos diante do painel de controle. As telas flutuavam em neon azul, projetando mapas de constelações que giravam como engrenagens de um relógio cósmico. Marina, com a câmera presa ao pescoço, olhava fascinada o motor quântico que pulsava no centro da sala, como um coração metálico prestes a explodir. — Então é isso? — perguntou Isadora, com a voz oscilando entre medo e excitação. — Vamos mesmo dar a volta ao mundo em oitenta dias? Marina sorriu, os olhos refletindo as luzes da máquina. — Não só ao mundo. Talvez às suas camadas secretas. O veículo não era avião nem navio. Era um orbivagão, invenção clandestina de cientistas anônimos, capaz de deslizar pelas dobras do espaço-tempo. Em cada salto, atravessava não apenas cidades, mas épocas. No décimo dia, aterrissaram numa Tóquio de 2080, onde árvores bioluminescentes iluminavam as ruas e drones entregavam sonhos em cápsulas transparentes. No trigésimo quinto, exploraram um Saara transformado em usina solar...

Filhos que Matam os Pais: Um Olhar Pela Psicologia

  Quando leio notícias ou estudo casos de filhos — às vezes ainda crianças ou adolescentes — que matam seus pais, sinto um abalo profundo. Não apenas pelo horror imediato, mas porque isso toca nas camadas mais delicadas da vida psíquica: o vínculo fundante entre pais e filhos. A Psicologia nos ensina que esse laço é, ao mesmo tempo, fonte de amor, proteção e conflito. A agressividade contra os pais não surge do nada, mas de um processo histórico, relacional e subjetivo que precisa ser compreendido.   O Paradoxo do Vínculo Primário Do ponto de vista psicanalítico, Freud já lembrava que as relações familiares carregam ambivalência: amor e ódio coexistem. A criança depende do pai e da mãe, mas também sente raiva de suas interdições, da sensação de abandono, ou da violência quando ela existe. Melanie Klein aprofundou isso ao mostrar como a fantasia de destruir os pais, em alguns momentos, faz parte do desenvolvimento normal — mas, em contextos de trauma, negligência ou abuso...

Página Virada? Os efeitos do julgamento de Bolsonaro para a nossa história

  Escrevo atravessado por uma sensação dupla: de alívio e de inquietação. O julgamento de Jair Bolsonaro, com suas consequências jurídicas e políticas, foi recebido por muitos como um marco histórico. Mas me pergunto: será mesmo uma página virada? Ou estamos diante de mais um capítulo mal costurado da crônica de impunidades que molda a política brasileira desde a ditadura? De um lado, é inegável que o veredito representa um freio institucional. O ex-presidente, que tantas vezes ameaçou as regras do jogo democrático, agora se vê contido pelo próprio sistema que tentou corroer. Há nisso uma lição importante: as instituições, por mais fragilizadas, ainda podem reagir. Para quem esteve nas ruas em 2019, 2020, 2021, enfrentando o avanço do autoritarismo, o julgamento é um respiro. Mas não consigo celebrar sem reservas. A história do Brasil é marcada por episódios em que a punição dos poderosos foi mais simbólica do que efetiva. Lembro da Lei da Anistia de 1979, que perdoou torturado...

A democracia anestesiada: Centrão, lulismo e o pragmatismo eleitoral até 2030

  Li hoje no Jornal O POVO o artigo de Márcio Coimbra sobre o papel do Centrão na engrenagem de poder em Brasília e sua paradoxal aliança com Lula rumo a 2026. O texto escancara uma realidade que me incomoda profundamente: a normalização da política como um grande balcão de negócios, em que a distribuição de benesses se confunde com projeto de governo, e o pragmatismo vira sinônimo de sobrevivência. Sinto que o Centrão, esse bloco amorfo e adaptável, já não é apenas um “aliado de ocasião”. Ele é o próprio eixo sobre o qual a política nacional gira — seja para a direita, seja para a esquerda. Quando leio que reformas fiscais, taxações e mudanças estruturais foram aprovadas com o apoio desse grupo, vejo menos um avanço democrático e mais um pacto silencioso em torno da preservação do poder. Um pacto que não se move por convicções, mas por conveniências. Não me iludo: programas como Gás do Povo , Pé-de-Meia e a isenção do Imposto de Renda têm impacto concreto na vida de milhões...