Da soberania digital à soberania em IA: um desafio que nos atravessa
Esse tema
não me parece distante, abstrato ou reservado apenas a técnicos de laboratório.
Quando penso em soberania digital, penso no meu próprio cotidiano: minhas
conversas circulam em aplicativos estrangeiros, meus dados são armazenados em
nuvens que não pertencem ao meu país, minhas buscas são processadas por
algoritmos que obedecem a interesses corporativos que não dialogam com minha
realidade. Sinto, então, a fragilidade de um corpo coletivo que perdeu o
controle sobre sua própria pele informacional.
Mas hoje
o debate vai além. Já não se trata apenas de soberania digital no sentido de
proteger dados, redes e infraestruturas. Entramos numa nova etapa, mais radical
e perigosa: a da soberania em Inteligência Artificial. A corrida pela IA
não é apenas tecnológica, é geopolítica. Quem detém as maiores plataformas de
modelos de linguagem, quem controla os chips de alta performance, quem dita os
padrões éticos globais, passa a ditar também as condições do trabalho, da
educação, da defesa e até da democracia dos outros países.
Ao
acompanhar as notícias, sinto que estamos sempre correndo atrás, como se a cada
anúncio feito em Washington, Pequim ou Bruxelas, nós, no Sul Global,
estivéssemos reduzidos a espectadores. Mas será que aceitamos esse destino? Se
não avançarmos em soberania em IA, corremos o risco de repetir a dependência
colonial: exportar recursos minerais estratégicos (como lítio, nióbio, terras
raras) e importar tecnologias prontas, que virão acompanhadas de pacotes
ideológicos e políticos.
A
soberania em IA, para mim, significa algo mais profundo do que erguer firewalls
ou montar data centers nacionais. Significa capacidade de decidir
coletivamente sobre o rumo das tecnologias que moldam nossas vidas.
Significa investir em pesquisa local, fortalecer universidades e centros de
inovação, criar políticas públicas que articulem Estado, sociedade civil e
empresas sem subordinação cega a interesses externos.
Ao mesmo
tempo, percebo um risco: a palavra “soberania” pode ser capturada por discursos
militaristas ou autoritários, que buscam apenas centralizar o poder em nome da
“segurança”. Por isso, precisamos disputar seu sentido. Soberania em IA deve
ser democrática e popular, não um pretexto para vigilância em massa ou
para o aprofundamento do capitalismo de dados.
Eu me
pergunto: o Brasil, com toda a sua diversidade cultural, linguística e social,
vai continuar aceitando algoritmos treinados apenas com lógicas do Norte
Global? Ou teremos coragem de desenvolver inteligências artificiais que
compreendam nossas línguas indígenas, nossos contextos periféricos, nossas
necessidades ambientais e sociais?
Se a
soberania digital foi o primeiro alerta, a soberania em IA é o chamado
definitivo. A corrida já começou, mas ainda podemos escolher como correr. Eu,
pelo menos, não quero ser apenas espectador. Quero que minha geração participe,
proponha, critique, invente. Porque o futuro da IA não pode ser apenas um
reflexo da desigualdade global: precisa ser um campo de criação coletiva e de
libertação.
Saúde e educação como campos estratégicos
Quando o
Ministério da Saúde cogita armazenar dados em grandes nuvens estrangeiras,
penso no perigo de perdermos autonomia sobre informações sensíveis de milhões
de brasileiros. O mesmo acontece na educação: plataformas de ensino baseadas em
IA já chegam às escolas, mas treinadas com realidades que pouco falam da
Amazônia, do sertão nordestino ou da periferia de Fortaleza e São Paulo. Sem
soberania em IA, corremos o risco de formar gerações que aprendem por
algoritmos que não reconhecem seus contextos.
A Base de Alcântara e o dilema da soberania
tecnológica
Outro
exemplo é a Base de Alcântara, no Maranhão. Durante décadas, foi tratada como
ativo estratégico para lançamentos espaciais, mas também como símbolo da
subordinação tecnológica brasileira. Hoje, a soberania em IA tem relação direta
com Alcântara: satélites equipados com algoritmos de vigilância e análise de
dados podem se tornar instrumentos de controle que não estão em nossas mãos. O
espaço, que já foi promessa de soberania, pode se converter em território de
dependência digital se não houver investimento nacional.
Chips, nuvem e a corrida global
A disputa
por chips de alta performance — como os da NVIDIA — nos mostra o abismo. O
Brasil não tem produção própria em escala competitiva, o que nos torna
dependentes das cadeias globais. Isso se conecta diretamente à IA: sem chips,
não há treinamento de modelos robustos. A mesma lógica vale para a nuvem:
projetos como os data centers no Ceará e em São Paulo são estratégicos, mas, se
controlados apenas por multinacionais, perpetuam a dependência.
Quem define a ética da IA?
Outra
questão me inquieta: quem define os padrões éticos da IA que consumimos?
Regulamentos como a Lei Europeia de IA ou iniciativas dos EUA podem até impor
parâmetros de segurança, mas não necessariamente refletem nossos dilemas. No
Brasil, onde o racismo estrutural, a desigualdade e a violência policial marcam
a realidade, a discussão ética não pode ser importada sem crítica. Precisamos
de diretrizes que falem do nosso chão, do nosso povo.
Caminhos para uma soberania brasileira em IA
Vejo,
portanto, que a soberania em IA no Brasil só será possível se combinarmos três
frentes:
- Investimento público e
universitário —
apoiar pesquisas locais, desde a USP até a UFC, e não deixar que a
inteligência saia do país por falta de incentivo.
- Parcerias Sul-Sul — articular com países
latino-americanos e africanos uma agenda comum de IA, em vez de reproduzir
a competição entre EUA e China.
- Regulação democrática — criar marcos legais que
protejam dados, garantam transparência e fortaleçam a sociedade civil,
evitando que a palavra “soberania” seja apropriada apenas por discursos
militares ou autoritários.
Escrevo
esse texto porque sinto que, se o Brasil não assumir esse desafio, ficará
condenado a ser apenas um exportador de minérios estratégicos para os chips e
um importador de algoritmos prontos. Quero, como cidadão, que nossas vozes,
nossas línguas e nossas histórias façam parte da inteligência que moldará o
futuro. A soberania em IA não é luxo: é questão de sobrevivência democrática.
Indicações de leitura para aprofundar
- Shoshana Zuboff – A Era
do Capitalismo de Vigilância (2019)
- Evgeny Morozov – Big
Tech: A Ascensão dos Dados e a Morte da Política (2022)
- Byung-Chul Han – Psicopolítica
(2014)
- Ronaldo Lemos – A Máquina
do Ódio (2020), sobre algoritmos, política e democracia no Brasil
- Michael Bhaskar &
Mustafa Suleyman – A Próxima Onda (2024), sobre o impacto
civilizacional da IA
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