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Mostrando postagens de julho, 2025

Capiba, a música que pulsa em nossa memória

  Ainda estou com os olhos molhados. E o coração, em compasso acelerado, como se tivesse dançado frevo por dentro. Sentei na poltrona do Teatro RioMar Fortaleza nesta quinta e saí de lá carregando muito mais do que uma melodia: levei comigo pedaços de uma história que também é minha, mesmo sem ser pernambucano, mesmo sem ter vivido o Recife de Capiba. Porque é disso que a boa arte é feita: daquilo que nos atravessa e nos pertence mesmo sem nos pedir licença. O musical "Capiba" , apresentado pelo Projeto Aria Social , é um abraço na memória coletiva brasileira. Um mergulho musical que une o refinamento da música erudita com a força do popular — exatamente como fazia o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa, o nosso Capiba. Um gênio do frevo, do lirismo amoroso, das orquestras e da alma nordestina. Logo nos primeiros acordes, já senti algo que há tempos não encontrava em espetáculos musicais: autenticidade. Não era apenas uma homenagem. Era uma encarnação cênica daquilo que...

Atravessando a Névoa: Psicologia e Doenças Neurodegenerativas

  Costumo pensar que algumas perdas são como brumas: silenciosas, lentas, mas devastadoras. Trabalhando com psicanálise, especialmente em contextos onde o envelhecimento e as doenças neurodegenerativas estão presentes, tenho aprendido que há dores que não gritam, mas que sussurram todos os dias – no esquecimento de uma palavra, na dificuldade de encontrar o caminho de casa, na angústia de um filho que vê o pai perder-se dentro de si mesmo. As doenças neurodegenerativas – como Alzheimer, Parkinson, Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), Huntington e demências diversas – comprometem, de forma progressiva, as funções cognitivas, motoras e emocionais. Do ponto de vista médico, são marcadas pela degeneração lenta e irreversível dos neurônios. Mas do ponto de vista psicológico, o que se perde não é apenas a memória ou a capacidade de andar: é o chão simbólico que sustenta o sujeito. Como psicanalista, tenho visto que o impacto não recai apenas sobre quem adoece. Famílias inteiras adoec...

Resenha crítica do livro "O herói interior" de Carol S. Pearson

  Li O herói interior , de Carol S. Pearson, num período da vida em que eu sentia um chamado profundo à transformação — uma inquietação existencial que não encontrava eco nos discursos prontos do cotidiano. A leitura foi, para mim, uma espécie de rito simbólico de passagem. Pearson oferece, através da linguagem dos arquétipos, uma bússola para quem busca compreender os ciclos profundos da psique humana. Seu texto ressoa como um mapa para travessias internas. A proposta do livro é clara: cada ser humano é um herói em potencial, atravessando jornadas arquetípicas ao longo da vida — o Inocente, o Órfão, o Guerreiro, o Mártir, o Viajante, o Mago, o Amante, o Soberano. Pearson articula essas figuras simbólicas com base no pensamento de Jung, Joseph Campbell e outros nomes da psicologia analítica, propondo que cada arquétipo representa uma etapa do desenvolvimento da consciência. O que me impressiona é a generosidade do olhar de Pearson. Ela não aponta modelos ideais de comportamento...

Vidas em Trânsito: um olhar sobre o tráfico de pessoas no mundo, no Brasil e no Ceará

  Nos últimos tempos, tenho sido tomado por uma angústia difícil de nomear — uma sensação de que, sob a superfície da vida cotidiana, se escondem violências que preferimos não ver. Uma delas, brutal e silenciosa, é o tráfico de pessoas. Não falo aqui de algo distante, exótico ou cinematográfico. Falo de uma prática real, cotidiana, enraizada nas fissuras da desigualdade, da exploração e da desumanização — uma chaga aberta no mundo e também no Brasil, inclusive no meu Ceará. O tráfico de pessoas é, talvez, a expressão mais cruel da transformação do ser humano em mercadoria. Mulheres, crianças, adolescentes e até homens adultos são aliciados, enganados, vendidos e usados como objetos de lucro. Para trabalho escravo, exploração sexual, adoção ilegal, tráfico de órgãos. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) , mais de 25 milhões de pessoas no mundo são vítimas de trabalho forçado, muitas delas traficadas. No Brasil, dados do Ministério dos Direitos Humanos apontam que...

Ser Antissocial: Entre a Defesa e o Silêncio

  Dizem que ser antissocial é evitar aglomerações, ter poucos amigos e se sentir exausto após conversas longas demais. Não raro, prefir o silêncio   ao ruído do convívio superficial. Mas será isso ser antissocial? Essa palavra, dita com certa censura, carrega um julgamento. Como se não gostar de estar sempre entre pessoas fosse uma falha de caráter. Mas a antissociabilidade é um conceito complexo — e muitas vezes mal compreendido. O que é ser antissocial? Na linguagem popular, “antissocial” virou sinônimo de introspecção, timidez ou desapego das normas de convivência. Mas na psicologia clínica, especialmente no campo da psicanálise e da TCC , o termo pode indicar fenômenos distintos. Do ponto de vista psicanalítico , ser antissocial pode significar um conflito com o outro internalizado: a relação com o social está marcada por angústias precoces, falhas no reconhecimento, experiências de exclusão ou trauma. Um sujeito retraído pode não estar simplesmente “evitando pess...

Resenha crítica sobre o filme Toxic, de Saulé Bliuvaitè

  Assisti Toxic com o corpo em alerta e o coração em suspensão. Foi como entrar em uma sala hermética, cheia de espelhos estilhaçados, onde cada reflexo não devolvia uma imagem fiel, mas uma sensação de desconforto, deslocamento e, paradoxalmente, reconhecimento. Saulé Bliuvaitè cria um filme que não se contenta em contar uma história: ele quer que o espectador a sinta com a pele , com o estômago. E foi assim que me vi diante de uma narrativa que desce áspera como areia na garganta. Toxic nos mergulha em uma atmosfera densa, com uma paleta fria e diálogos rarefeitos, como se as palavras estivessem adoecidas pelo peso de tudo aquilo que não se diz. E talvez essa seja uma das grandes virtudes (e violências) do filme: ele retrata com precisão a opressão silenciosa e cumulativa de relações que se dizem “amorosas” mas são, na verdade, pulsões de controle, possessão e corrosão psíquica. Não é o grito que incomoda, mas o sussurro venenoso — o gás inodoro que mata aos poucos. A prota...

Cultura ou Cárcere? Um grito em defesa da vida criativa

  Escrevo este artigo tomado por um misto de indignação e tristeza ao tomar conhecimento do Projeto de Lei 508/2025 apresentado pelo deputado federal Kim Kataguiri, que propõe o redirecionamento de parte dos recursos da Lei Rouanet para a construção de presídios. A ideia, que à primeira vista pode parecer apenas mais uma provocação típica de uma extrema direita moralista e punitivista, na verdade representa um ataque direto à alma do Brasil: sua cultura, sua criatividade, sua capacidade de imaginar outro mundo possível. Como alguém que vive, sente e defende a cultura brasileira não como adorno, mas como eixo de vida, não posso silenciar diante dessa proposta. A cultura é um dos poucos instrumentos que temos para reelaborar dores, romper invisibilidades, dar voz ao que foi calado e construir pontes num país tão fragmentado. A Lei Rouanet, apesar de críticas e distorções pontuais, tem sido ferramenta essencial para garantir o acesso à produção artística e à memória social em todas ...

Nosso mundo adulto e suas raízes na infância: uma travessia íntima e coletiva

  Faz tempo que compreendi que, por mais que a gente se esforce em separar as fases da vida — infância, adolescência, juventude, idade adulta — elas jamais são capítulos estanques de um livro. São camadas sobrepostas, como sedimentos da alma. Em muitos momentos do meu cotidiano, percebo a criança que fui me espiando pelos cantos, reagindo no silêncio das palavras ou nos impulsos de escolhas impensadas. Esse retorno da infância não é regressão: é estrutura. É sobre isso que quero escrever — como nossa vida adulta é moldada por experiências afetivas, corporais, relacionais e simbólicas da primeira infância. A psicanálise, especialmente na obra de Melanie Klein, oferece uma contribuição profunda para esse entendimento. Klein nos mostra que já no início da vida estamos tomados por angústias, medos, desejos e vínculos que constituem a matriz de nossa forma de amar, odiar, confiar ou temer. A criança, diz ela, desde muito cedo organiza fantasias inconscientes, busca o seio bom e teme o...

Resenha crítica sobre o livro História das Origens da Consciência, de Erich Neumann

  Ler História das Origens da Consciência , de Erich Neumann, foi como atravessar um rio profundo e espesso, onde a corrente das ideias nos arrasta para zonas obscuras e míticas da mente humana. Logo nas primeiras páginas, percebi que não se tratava apenas de um livro sobre psicologia analítica, mas de uma tentativa ousada de mapear o processo pelo qual a consciência humana se separou do inconsciente — uma narrativa psicológica e simbólica do nascimento do ego e da cultura. Como discípulo de Jung, Neumann se apropria do arcabouço da psicologia analítica, mas leva o pensamento do mestre a outro nível de elaboração. A base da obra é o mito — especialmente os mitos antigos, como os da criação, do herói e do feminino. Neumann constrói sua teoria a partir da imagem arquetípica da Grande Mãe e da luta do ego para se diferenciar de seu domínio. O herói, nesse contexto, é o símbolo da consciência nascente, que precisa enfrentar monstros interiores, labirintos e deuses arcaicos para poder...