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Mostrando postagens de agosto, 2025

Lendo Políticas do Encanto, de Paolo Demuru

  Quando abri Políticas do Encanto , de Paolo Demuru, tive a sensação de estar entrando num território que mistura filosofia, semiótica e política, mas sempre atravessado pela vida concreta. O livro não é um tratado distante: é uma provocação. Ele me colocou diante de uma pergunta incômoda — como é que nos deixamos seduzir, hoje, por imagens, discursos e afetos que, em vez de emancipar, muitas vezes nos aprisionam? O termo “encanto”, que Demuru utiliza, não se refere apenas à beleza ou ao fascínio superficial. Ele fala de algo mais profundo: a capacidade de certos discursos e práticas de mobilizar afetos, desejos, sonhos coletivos. A política, para ele, não se resume a projetos de governo, mas a modos de encantar corpos e mentes, de capturar nossa atenção, de convocar identidades. E esse “encantamento” pode ser emancipador, mas também pode ser manipulação. Ao ler, pensei muito no Brasil recente. Como foi possível que a extrema direita, em tão pouco tempo, mobilizasse multidões ...

Lendo Cegueira Moral, de Zygmunt Bauman

  Ao me deparar com o livro Cegueira Moral , de Zygmunt Bauman, senti como se ele tivesse colocado em palavras um mal-estar que me atravessa diariamente: essa sensação de viver num mundo onde as fronteiras éticas se dissolvem e, ao mesmo tempo, se naturalizam condutas que deveriam nos causar horror. Não é um livro fácil, não pela linguagem, mas pelo espelho que ele nos oferece. Bauman parte da ideia de que a modernidade não produziu apenas progresso técnico e conforto material, mas também um tipo específico de indiferença — uma insensibilidade diante do sofrimento do outro. Essa é a tal “cegueira moral”: não a incapacidade de distinguir o bem do mal, mas a erosão da responsabilidade individual em meio às engrenagens sociais, econômicas e institucionais que transformam pessoas em números, casos, estatísticas. Enquanto lia, não pude deixar de pensar em episódios do cotidiano brasileiro. Quando vejo reportagens sobre mortes em hospitais públicos por falta de atendimento, muitas ve...

Diálogos entre poesia, psicanálise e antropologia

  Escrevo estas linhas como quem atravessa um território sem fronteiras definidas. Sempre que me aproximo da poesia, sinto que não estou apenas diante de palavras que descrevem algo, mas de uma fala que me atravessa, que revela o que eu nem sabia que estava em mim. E é justamente nesse ponto que encontro a psicanálise: esse lugar de escuta, de descida às camadas subterrâneas do desejo, ao que escapa da linguagem mas insiste em se manifestar. Já a antropologia me surge como uma ponte: ao invés de olhar apenas para dentro, ela me obriga a olhar para o outro, para a cultura, para as formas simbólicas que organizam a vida coletiva. Percebo que esses três campos — poesia, psicanálise e antropologia — não estão isolados. Eles se cruzam naquilo que chamaria de escuta do humano . O poeta, ao escrever, não descreve apenas a si mesmo, mas traduz afetos universais em imagens singulares. O psicanalista, ao interpretar, lê no sintoma uma poesia involuntária, feita de metáforas e deslocamentos...

O mundo é só movimento e desejo?

  Carrego essa pergunta como quem tateia no escuro. Se o mundo fosse apenas movimento, seria pura física: corpos que se deslocam, energias que se transformam, partículas que colidem. Se fosse apenas desejo, seria pura psicanálise: faltas que jamais se completam, fantasmas que nos perseguem, objetos que sempre escapam. Mas o que me inquieta é justamente essa junção — movimento e desejo — como se fossem as duas engrenagens que sustentam a vida e a história. Olho ao redor e vejo tudo em movimento: os fluxos da cidade, os algoritmos que não cessam de rodar, a economia que nunca dorme. Mas esse movimento, sozinho, seria vazio. Ele precisa de um vetor, de uma direção, de uma chama. E essa chama é o desejo. Desejo de consumir, de amar, de ser reconhecido, de ocupar o espaço do outro, de criar algo que ainda não existe. É ele quem faz o movimento ganhar sentido. Na minha própria vida, percebo como o desejo me arrasta. Desejo ser amado, e por isso me movo em direção ao outro, às vezes a...

Entre Frações, Farpas e Falsas Unidades: O Brasil nas Tramas das Classes

  Escrever sobre classes sociais no Brasil é como tentar mapear um terreno que treme constantemente. As placas tectônicas da nossa estrutura social vivem em atrito — e vez ou outra, provocam terremotos que chamamos de crise política. Mas essas crises não são eventos isolados. Elas revelam as disputas e alianças, as traições e conluios, os silêncios e os gritos das diferentes classes e, sobretudo, de suas frações. Durante muito tempo, eu mesmo repeti, meio que por instinto, que o Brasil era um país de “classe média”. Um país onde as favelas convivem com shoppings de luxo, onde o motoboy entrega sushi num condomínio com quadra de tênis, onde a babá cuida do filho da mulher que ela mesma amamentou anos antes como empregada doméstica da família. Só depois fui entendendo, com ajuda de autores como Florestan Fernandes, Jessé Souza e Pierre Bourdieu, que essas camadas sociais não convivem em paz — elas se cruzam, mas em um sistema de desigualdades tão naturalizado que parece invisível. ...