Entre Frações, Farpas e Falsas Unidades: O Brasil nas Tramas das Classes

 

Escrever sobre classes sociais no Brasil é como tentar mapear um terreno que treme constantemente. As placas tectônicas da nossa estrutura social vivem em atrito — e vez ou outra, provocam terremotos que chamamos de crise política. Mas essas crises não são eventos isolados. Elas revelam as disputas e alianças, as traições e conluios, os silêncios e os gritos das diferentes classes e, sobretudo, de suas frações.

Durante muito tempo, eu mesmo repeti, meio que por instinto, que o Brasil era um país de “classe média”. Um país onde as favelas convivem com shoppings de luxo, onde o motoboy entrega sushi num condomínio com quadra de tênis, onde a babá cuida do filho da mulher que ela mesma amamentou anos antes como empregada doméstica da família. Só depois fui entendendo, com ajuda de autores como Florestan Fernandes, Jessé Souza e Pierre Bourdieu, que essas camadas sociais não convivem em paz — elas se cruzam, mas em um sistema de desigualdades tão naturalizado que parece invisível.

A classe dominante no Brasil não é homogênea. Ela se divide em frações: há o agronegócio, o rentismo financeiro, os grandes empresários industriais, os setores de serviços de alto luxo, a alta burocracia do Estado. E cada uma dessas frações tem seus próprios interesses, seus próprios partidos informais e seus representantes formais — geralmente travestidos de "defensores do povo" em campanhas publicitárias. O que as une? O medo de perder o privilégio, o medo da redistribuição, o medo da plebe que exige mais do que lugar na fila.

Lembro bem do golpe parlamentar de 2016. Para mim, não foi só a queda de uma presidenta. Foi um realinhamento brutal entre as frações da classe dominante. A indústria já não via vantagem num governo que tentava conciliar crescimento com programas sociais. O mercado financeiro queria austeridade e teto de gastos. A classe média alta, essa fração ressentida que se imagina elite, mas depende do Estado para manter seus filhos nas universidades privadas e seus planos de saúde funcionando, foi às ruas vestida de verde e amarelo — e empurrou o país para o abismo com um sorriso nos lábios.

E a classe trabalhadora? Essa categoria que tantos teóricos deram como morta ou diluída na informalidade ainda resiste — mas fragmentada, precarizada, desorganizada. Vejo isso em conversas com amigos que são professores temporários, entregadores de app, funcionários públicos à beira de um burnout. Todos trabalhando muito. Todos exaustos. Todos sem tempo para se organizar, sem sindicato forte, sem canais legítimos de escuta. Divididos entre o medo de “virar pobre” e o desprezo por quem já está na base.

As frações subalternas da classe média também estão em guerra. Há os pequenos empresários que se identificam mais com o patrão do que com o empregado. Há os servidores que temem a “invasão comunista” e votam em quem promete bala. Há os que vivem em condomínio e têm pavor de que o pobre use o mesmo elevador. O que os une? O desejo de subir. O medo de cair. A ignorância sobre como o sistema os usa como massa de manobra.

A crise política brasileira é, portanto, crise de hegemonia — como diria Gramsci. Nenhuma classe ou fração tem conseguido construir um projeto duradouro de país. Vivemos entre soluços autoritários, tentativas tímidas de conciliação e rebeliões difusas. A extrema direita soube capitalizar isso com sua estética de ódio e sua retórica antipolítica. Já a esquerda hesita entre alianças táticas e a reconstrução de uma base popular profundamente abalada por décadas de neoliberalismo.

Hoje, mais do que nunca, acredito que só a leitura cuidadosa das classes e de suas frações pode nos tirar do labirinto. Não adianta pensar em democracia abstrata se não entendermos quem ganha e quem perde com cada voto, cada veto, cada pauta esquecida. As eleições são apenas a ponta do iceberg. A verdadeira disputa está no subsolo: nos financiamentos de campanha, nas articulações do agronegócio com o Congresso, nos pactos silenciosos entre as frações dominantes e uma parte da classe média que sonha em ser elite enquanto pisa na cabeça de quem está embaixo.

E nesse emaranhado, é urgente resgatar a ideia de classe não como rótulo fixo, mas como processo, como lugar de conflito e de possibilidade. Porque enquanto acharmos que somos "todos classe média", a elite ri — e governa.

 

Indicações de leitura:

  • Florestan FernandesA Revolução Burguesa no Brasil
  • Jessé SouzaA Elite do Atraso e A Classe Média no Espelho
  • Pierre BourdieuA Distinção e O Poder Simbólico
  • Gramsci, AntonioCadernos do Cárcere

 

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        ELITE (1%)        

│ Poder econômico e político│

│ → Rentismo financeiro    

│ → Agronegócio exportador 

│ → Altas corporações      

└────────────┬──────────────┘

            

            

┌────────────────────────────┐

     CLASSE MÉDIA SUPERIOR 

│ (15-20%)                  

│ → Profissionais liberais  

│ → Altos servidores públicos│

│ → Empresariado médio      

│ → Médicos, juízes, CEOs   

└────────────┬──────────────┘

            

            

┌────────────────────────────┐

     CLASSE MÉDIA INFERIOR 

│ (30-35%)                  

│ → Pequenos empresários    

│ → Professores e técnicos  

│ → Funcionários administrativos │

│ → Servidores precarizados 

└────────────┬──────────────┘

            

            

┌────────────────────────────┐

    CLASSE TRABALHADORA    

│ (35-40%)                  

│ → Assalariados industriais│

│ → Trabalhadores do setor 

   de serviços e comércio 

│ → Trabalhadores formais  

└────────────┬──────────────┘

            

            

┌────────────────────────────┐

     SUBPROLETARIADO       

│ (15-20%)                  

│ → Trabalhadores informais 

│ → Desempregados           

│ → Moradores de favelas    

│ → Renda mínima ou inexistente│

 

 

 

 

 

ELITE ECONÔMICA

├─► Agronegócio: interesses no latifúndio, exportações, desregulação ambiental

├─► Mercado financeiro: foco em austeridade, juros altos, corte de direitos sociais

├─► Alta indústria e tecnologia: subsídios, isenções, baixa tributação

 

CLASSE MÉDIA SUPERIOR

├─► Alta burocracia estatal: estabilidade, aposentadorias privilegiadas

├─► Profissões prestigiadas: meritocracia, exclusividade, consumo simbólico

├─► Aliada política da elite, mas ressentida por não deter o capital

 

CLASSE MÉDIA INFERIOR

├─► Ambivalente: deseja ascender, mas teme a “invasão dos de baixo”

├─► Conservadora em valores; economicamente vulnerável

├─► Capturada por pautas morais e discurso antipolítica

 

CLASSE TRABALHADORA

├─► Exige emprego, direitos, políticas sociais e redistributivas

├─► Fraturada por desemprego, terceirização e individualização neoliberal

├─► Ponto estratégico para mudança, mas desorganizada politicamente

 

SUBPROLETARIADO

├─► Sofre com fome, violência, ausência do Estado

├─► Mais suscetível a alianças clientelistas e lógicas de sobrevivência

├─► Potencial de ruptura social, mas sem representação clara

 

 

 

                     CRISE POLÍTICA

                           

         ┌──────────────────┼──────────────────┐

                                            

  ELITE ECONÔMICA      ESTADO NEOLIBERAL    MÍDIA CORPORATIVA

                                            

   articula interesses    desmonte do         discurso de

   e financia eleições    Estado social       "combate à corrupção"

        

        

CAPTURA DAS CLASSES MÉDIAS

 → Pautas morais

 → Antipetismo

 → Medo da "venezualização"

 

        

   FRATURA DAS CLASSES POPULARES

 → Precarização

 → Desorganização sindical

 → Individualismo e desconfiança

 

        

        EXTREMA DIREITA GANHA TERRENO

 → Mobilização emocional

 → Oposição ao sistema

 → Retórica de ódio e anticiência

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