Capiba, a música que pulsa em nossa memória

 

Ainda estou com os olhos molhados. E o coração, em compasso acelerado, como se tivesse dançado frevo por dentro. Sentei na poltrona do Teatro RioMar Fortaleza nesta quinta e saí de lá carregando muito mais do que uma melodia: levei comigo pedaços de uma história que também é minha, mesmo sem ser pernambucano, mesmo sem ter vivido o Recife de Capiba. Porque é disso que a boa arte é feita: daquilo que nos atravessa e nos pertence mesmo sem nos pedir licença.

O musical "Capiba", apresentado pelo Projeto Aria Social, é um abraço na memória coletiva brasileira. Um mergulho musical que une o refinamento da música erudita com a força do popular — exatamente como fazia o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa, o nosso Capiba. Um gênio do frevo, do lirismo amoroso, das orquestras e da alma nordestina.

Logo nos primeiros acordes, já senti algo que há tempos não encontrava em espetáculos musicais: autenticidade. Não era apenas uma homenagem. Era uma encarnação cênica daquilo que Capiba significou — e significa — para o Brasil. Os jovens do Projeto Aria Social mostraram, com excelência técnica e sensibilidade, que o legado cultural nordestino pode ser ressignificado pelas novas gerações com respeito, vigor e beleza.

O que vi no palco não foi só música. Foi política, resistência e cidadania. A escolha de homenagear Capiba é, também, uma escolha ética: um artista que transformou o frevo em símbolo de identidade e alegria para um povo tantas vezes marginalizado. É um gesto político, sim, fazer arte de qualidade, gratuita, com acesso e formação, como propõe o Aria Social. Em tempos de cortes orçamentários e de ataque à cultura, ver jovens de periferias em cena contando nossa história é uma afirmação de futuro.

A encenação é precisa e poética. A direção soube equilibrar música, dança e dramaturgia sem cair no didatismo. As coreografias dialogam com a força do corpo popular e os figurinos trazem o colorido do Recife com sofisticação. A presença de instrumentos ao vivo confere uma atmosfera arrebatadora — como se o próprio Capiba estivesse ali, regendo discretamente os compassos do tempo.

Mas foi no olhar de um dos meninos do elenco, em cena, que me peguei mais emocionado. Ele parecia entender que estava ali não apenas como intérprete, mas como herdeiro de uma herança artística imensa, que o palco lhe devolvia como um espelho ampliado de potência.

Saí do teatro com uma certeza: a cultura é, sim, uma das nossas maiores armas de transformação. O Aria Social, ao dar oportunidade a jovens em situação de vulnerabilidade por meio da arte, realiza aquilo que políticas públicas ainda negligenciam: inclusão com dignidade. E ao escolher Capiba como mote do espetáculo, mostra que cultura popular é alta cultura — e que nossos mestres não podem ser esquecidos.

 

 

 

Leituras e referências para seguir dançando por dentro:

  • Hermilo Borba FilhoO espírito do carnaval
  • Frevo, paixão e identidade – documentário da Fundação Joaquim Nabuco
  • Antonio Nóbrega, O maracatu misterioso (literatura e música popular)
  • Gilberto Freyre, Nordeste
  • Regina Dantas, Capiba, o maestro do frevo

 

Porque, como canta o frevo, “tá chegando a hora”… de não deixarmos nossa memória morrer. E que bom que o Projeto Aria Social chegou a tempo de nos lembrar disso.

Se você ainda não viu, veja. E se viu, espalhe.
Capiba não é apenas uma homenagem.
É um chamado.

 

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