Fabíola Liper canta Ângela Rô Rô: quando a voz vira testemunho do indizível
Hoje, no CCBNB Fortaleza, senti algo raro: aquela vibração íntima que só
aparece quando uma intérprete não está apenas cantando, mas devolvendo ao
mundo, com seu próprio corpo, o peso e a leveza de outra artista que atravessou
décadas com uma sinceridade brutal. Fabíola Liper subiu ao palco para cantar
Ângela Rô Rô — e, de algum modo difícil de explicar, saiu dali também cantando
a nós. Cantando a mim.
A apresentação começou sem alarde, como se ela
estivesse chegando na sala da nossa casa, segurando com cuidado as canções que
moldaram gerações de amores tortos, noites inteiras e sobrevivências. E foi
exatamente isso que me tocou: Fabíola não imitou Ângela. Ela a escutou. Escutou
seus abismos, seus ímpetos, seu sarcasmo, seu humor ferido, seu erotismo
direto, sua coragem sempre entrecortada por dores que o Brasil insistiu — e
insiste — em não querer ouvir.
Logo nos primeiros versos, minha memória fez
aquele gesto automático de procurar a voz grave de Rô Rô. Mas o que vinha era
outra coisa: uma voz que não tentava ser igual, mas que trabalhava a mesma
matéria — verdade. E verdade é sempre pessoal. Verdade tem saliva, respiração,
pequenas hesitações e um modo singular de dizer “eu estou aqui”.
Fabíola Liper construiu essa presença: firme,
íntima e delicadamente irreverente. A cada interpretação, parecia que ela
acendia outra lâmpada no labirinto emocional que a obra de Ângela Rô Rô sempre
foi. As músicas, que já conheço há anos, chegavam com novas quinas. Em algumas,
o tom era confessional; noutras, parecia que as letras ganhavam um corpo de
humor e resistência. É essa mistura que torna Rô Rô única — e Fabíola soube
honrar o risco que é cantar uma mulher que nunca foi domesticável.
Em “Compasso”, percebi meu peito acompanhando
o balanço como quem, de repente, entende algo que viveu e não sabia dizer. Em
“Amor, meu grande amor”, Fabíola segurou cada sílaba como se segurasse um
destino — e ali, por alguns segundos, estava a mesma suspensão que eu sinto
quando ouço a gravação original: o instante em que o amor vira perigo, e o
perigo vira beleza.
Mas o momento mais forte, para mim, não foi um
refrão, um agudo ou uma nota prolongada. Foi a postura: Fabíola falava com o
público como quem compartilha um segredo que não deveria ser segredo. Falava de
Rô Rô como quem reconhece o quanto essa mulher foi subestimada, julgada,
ridicularizada — e ainda assim produziu uma das obras mais potentes da música
brasileira. Ver uma artista jovem, cearense, reencontrar essa linhagem e
oferecê-la ao público com respeito e audácia me emocionou profundamente.
No fundo, acho que o que me moveu hoje foi
presenciar esse encontro de gerações, gestos, dores e liberdades. Fabíola Liper
não foi apenas intérprete: foi ponte. E ouvir Ângela Rô Rô naquele palco,
naquela sala, naquela noite quente de Fortaleza, foi lembrar que a música
também é um modo de resistir àquilo que nos tenta diminuir.
Saí do CCBNB com uma sensação rara: a de que
algumas vozes não apenas ecoam, mas nos realinham por dentro. A de que certas
artistas — como Ângela Rô Rô e, hoje, Fabíola Liper — têm a coragem de cantar
aquilo que quase ninguém ousa dizer.
E
que bom que, hoje, eu estava ali para ouvir.
Muito grata pela presença sensível e por dedicar sua bela escrita ao Tributo a genial e eterna Angela Rô Rô. A arte só faz sentido quando afeta mentes e corações. Evoé, Rô Rô!
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