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Mostrando postagens de novembro, 2025

Sob o sol da cidade: ler Fortaleza com Jan Gehl e Birgitte Svarre

  Ler A vida na cidade: Como estudar , de Jan Gehl e Birgitte Svarre, foi como colocar novos óculos para enxergar Fortaleza — uma cidade que conheço desde sempre, mas que, a partir dessa leitura, começou a se mostrar de um modo diferente. Gehl e Svarre nos convidam a observar a vida urbana não pelos prédios, nem pelos planos diretores, mas pelos gestos miúdos: quem senta na sombra de uma árvore, quem atravessa correndo uma avenida, quem conversa encostado num muro ao fim da tarde. Comecei a aplicar esse olhar quando caminhei pelo Calçadão da Beira Mar , recém-revitalizado. Vi casais caminhando, grupos de jovens patinando, vendedores de água de coco, turistas tirando fotos do pôr do sol e senhores jogando dominó sob o quiosque. Era a tradução viva do que Gehl chama de “vida entre prédios”: o espaço público como palco das relações humanas, um organismo que só existe quando habitado. Mas essa mesma cidade revela seus contrastes quando a gente sai das áreas turísticas. Em bairros c...

O dia em que o micro-ondas me humilhou

  Acordei otimista. O sol entrava pela janela, o café estava pronto, e pela primeira vez em semanas eu tinha decidido que iria comer algo saudável . Peguei a tigela de aveia, fatiei uma banana (com a destreza de um chef de reality show) e coloquei tudo no micro-ondas para “dar uma aquecidinha”. Dois minutos. Só dois minutos. Foi o suficiente para o inferno começar. O micro-ondas começou a chiar. Depois a girar como se tivesse incorporado o espírito de um motor de avião. E, em seguida — um PÁ! ensurdecedor. Corri. Abri a porta. E fui recepcionado por uma explosão de papas de aveia espalhadas no teto, na parede, na minha camisa e, de algum modo misterioso, dentro da minha sandália. O pior não foi a sujeira. Foi o cheiro: parecia uma mistura entre infância mal resolvida e derrota adulta. Enquanto eu limpava o campo de guerra, o gato me observava do sofá, com aquele olhar típico de quem está pensando: “Esse é o ser racional da casa?” Mas ainda havia esperança. Lavei tu...

“Entre o mito da preguiça e o eco do escravismo: o que o Bolsa Família realmente significa”

  Tenho ouvido com frequência — nas conversas de rua, nos programas de rádio, nas redes sociais — a frase: “as pessoas não querem mais trabalhar por causa do Bolsa Família.” Toda vez que escuto isso, um incômodo profundo me toma. Esse tipo de discurso não é apenas um erro de interpretação econômica — é uma herança moral do escravismo que ainda vive entre nós , disfarçada de senso comum. É a velha ideia de que o pobre só tem valor se estiver submetido, exausto e silencioso , trabalhando por muito e recebendo pouco, sem direitos, sem descanso, sem dignidade.   1. O que o Bolsa Família realmente é Antes de mais nada, é preciso desfazer a distorção. O Bolsa Família é um programa de transferência de renda condicionada , criado para romper o ciclo da pobreza e garantir o mínimo de dignidade às famílias mais vulneráveis. Ele não “paga para a pessoa ficar em casa” — ele cria as condições básicas para que ela viva o suficiente para buscar autonomia . Para receber o benef...

“Kátia Freitas: 30 anos de K, e a eternidade em sua voz”

  Hoje, no Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza respirou música, memória e emoção. Assisti à apresentação da cantora Kátia Freitas , uma das vozes mais expressivas e poéticas da cena cearense, comemorando os 30 anos do álbum K — um marco da música nordestina contemporânea — e apresentando também canções inéditas , como quem revisita o passado sem se prender a ele. Sentei-me entre o público e senti um arrepio logo nos primeiros acordes. Aquele mesmo K que, nos anos 1990, revelava uma artista ousada, misturando poesia e experimentação sonora, agora voltava à cena com a serenidade de quem resistiu e amadureceu sem perder o risco . Era como se o tempo se dobrasse sobre o palco — a juventude de ontem e a sabedoria de hoje se encontrando num mesmo canto.   1. A mulher e a voz Kátia Freitas é dessas intérpretes raras que não cantam apenas notas — cantam estados de alma . Cada gesto, cada pausa, cada respiração parecia conter uma história. Quando ela abriu o sho...

“Pais e mães tóxicos: quando é hora de romper a relação?”

  Durante muito tempo, pensei que o amor bastasse. Que toda relação entre pais e filhos, por mais difícil que fosse, poderia ser resolvida com diálogo, paciência e perdão. Mas a vida — e o amadurecimento emocional — me mostraram outra coisa: existem vínculos que adoe­cem , famílias que se sustentam em culpa e controle, e afetos que se confundem com dominação. E, às vezes, é preciso romper — não por falta de amor, mas por amor a si mesmo.   1. A face invisível da toxicidade familiar Pais e mães tóxicos não são necessariamente cruéis no sentido explícito. Muitas vezes, são carinhosos em público e devastadores em privado. Podem manipular, controlar, desqualificar, silenciar. O afeto, quando instrumentalizado, torna-se uma arma emocional : “Olha tudo o que fiz por você”, “Você me deve gratidão”, “Sem mim, você não seria nada”. Essas frases, ditas em tom de cuidado, escondem o veneno da dependência. Vi isso em muitas histórias — e vivi um pouco também. Mães que cobr...

“O projeto é o poder: um artigo sobre O Projeto, de David A. Graham — e o novo autoritarismo americano”

  Ler O Projeto , de David A. Graham , foi como abrir uma janela para dentro do coração escuro da política contemporânea. O autor, jornalista da The Atlantic , não escreve apenas sobre Donald Trump e o trumpismo — ele revela um método de corrosão institucional que transforma a democracia em espetáculo e a mentira em política de Estado. Enquanto eu lia, percebia que Graham não estava descrevendo apenas os Estados Unidos, mas um modelo de dominação global — uma ideologia que usa a linguagem da liberdade para justificar o autoritarismo, que se alimenta do medo e transforma a diversidade em ameaça.   1. O projeto não é um homem — é um sistema Graham insiste: “O projeto” não é Trump, mas a estrutura que o sustenta. Uma coalizão de ressentimento racial, fundamentalismo religioso, desinformação digital e interesses corporativos que vê o Estado como instrumento de poder, não de justiça . Trump, nesse contexto, é apenas o símbolo carismático de um projeto totalizante . E...

“Entre a chantagem e o poder: um artigo sobre a má relação entre Câmara, Senado e Governo Federal — e o que nós, sociedade civil, podemos fazer”

  Nos últimos meses, tenho assistido com crescente desconforto ao que se tornou uma rotina política no Brasil: um permanente braço de ferro entre o Congresso Nacional e o Governo Federal . A cada semana, uma nova disputa — seja pela liberação de emendas, pela derrubada de vetos, pela tramitação de projetos estratégicos ou pela simples demonstração de força. O que era para ser diálogo republicano entre poderes transformou-se em hostilidade disfarçada de autonomia institucional . O que mais me inquieta é perceber que, em muitos momentos, o Executivo já não governa — apenas administra crises . E o Legislativo, em vez de ser um espaço de representação popular, parece agir como um condomínio de interesses privados .   1. O Congresso que cobra para funcionar Hoje, o governo não negocia projetos, negocia sobrevivência. A cada votação importante, paira a ameaça: se não houver liberação de emendas, o projeto não passa. Essa lógica de chantagem orçamentária destrói qualquer...