“O projeto é o poder: um artigo sobre O Projeto, de David A. Graham — e o novo autoritarismo americano”

 

Ler O Projeto, de David A. Graham, foi como abrir uma janela para dentro do coração escuro da política contemporânea.
O autor, jornalista da The Atlantic, não escreve apenas sobre Donald Trump e o trumpismo — ele revela um método de corrosão institucional que transforma a democracia em espetáculo e a mentira em política de Estado.

Enquanto eu lia, percebia que Graham não estava descrevendo apenas os Estados Unidos, mas um modelo de dominação global — uma ideologia que usa a linguagem da liberdade para justificar o autoritarismo, que se alimenta do medo e transforma a diversidade em ameaça.

 

1. O projeto não é um homem — é um sistema

Graham insiste: “O projeto” não é Trump, mas a estrutura que o sustenta.
Uma coalizão de ressentimento racial, fundamentalismo religioso, desinformação digital e interesses corporativos que vê o Estado como instrumento de poder, não de justiça.

Trump, nesse contexto, é apenas o símbolo carismático de um projeto totalizante.
E o que me causa espanto é perceber como, passo a passo, medidas políticas, jurídicas e simbólicas vêm aproximando os EUA de um regime de exceção permanente, com traços cada vez mais fascistas/nazistas e higienistas — uma política que busca purificar a nação eliminando tudo o que considera “imperfeito” ou “estranho”.

 

2. O retorno da lógica eugênica

O trumpismo, em sua nova fase, tem flertado abertamente com ideias de superioridade racial e de exclusão biopolítica.
Políticas migratórias cada vez mais duras e violentas — como o plano de repatriar milhões de imigrantes, erguer novos campos de detenção e reintroduzir deportações em massa — são justificadas com o velho discurso de “proteger os verdadeiros americanos”.

A retórica anti-imigrante se amplia para outros alvos: negros, latinos, africanos, povos indígenas, asiáticos, muçulmanos, todos enquadrados como “ameaças culturais” ou “inimigos internos”.
Mas o projeto vai além da xenofobia.
Ele incorpora o ódio à diferença como política de Estado: ataca pessoas com deficiência, obesas, neurodivergentes, porque representam o corpo que foge da norma; persegue a comunidade LGBTQIA+, proibindo livros, criminalizando o ensino sobre diversidade, restringindo o direito ao próprio corpo.

A América que Graham descreve é uma América em guerra contra sua própria humanidade.
E essa guerra é travada com leis, decretos e fake news.

 

3. O controle da verdade: o Ministério da Mentira

Um dos pontos mais perturbadores do livro — e que o autor observa com precisão jornalística — é o esforço crescente do trumpismo em controlar os órgãos públicos para que deixem de servir à verdade e passem a servir à narrativa do poder.
Nos últimos anos, vimos:

  • Cientistas e técnicos do meio ambiente sendo demitidos ou silenciados por divulgarem dados sobre aquecimento global;
  • Centros de pesquisa e universidades sofrendo cortes e censuras;
  • Relatórios oficiais adulterados para esconder informações sobre a pandemia, o clima e o impacto de políticas migratórias;
  • Agências federais, como a EPA (Agência de Proteção Ambiental) e os CDC (Centros de Controle de Doenças), sendo pressionadas a alinhar suas comunicações à retórica trumpista.

É o mesmo método usado pelos regimes totalitários do século XX: controlar o discurso, deformar os fatos, converter a mentira em patriotismo.
Quando o Estado decide o que é verdade, o cidadão deixa de poder pensar — e o pensamento livre é substituído pelo medo.

 

4. A perseguição aos intelectuais e à ciência

O anti-intelectualismo é uma das colunas centrais do projeto autoritário descrito por Graham.
Nos EUA de hoje, professores universitários são perseguidos por “doutrinação”, cientistas são ridicularizados, jornalistas são chamados de inimigos da pátria.
O pensamento crítico virou suspeito.
E isso é o que mais se aproxima de uma nova forma de fascismo cultural: a rejeição ao saber, à complexidade, à dúvida — tudo o que possa atrapalhar a certeza totalitária.

Assistimos à ascensão de um “nacionalismo científico negativo”:
as instituições públicas de pesquisa são enfraquecidas, enquanto think tanks ideológicos, financiados por bilionários e grupos religiosos, ganham espaço na definição de políticas públicas.
É a privatização da verdade — e o silenciamento de quem ainda tenta pensá-la.

 

5. O corpo como campo de batalha

As políticas de exclusão não são apenas simbólicas — elas se inscrevem nos corpos.
O novo trumpismo busca definir quem tem direito de existir plenamente.
Corpos racializados, corpos gordos, corpos femininos e dissidentes são vistos como desvios.
Ao controlar a estética e o comportamento, o regime tenta purificar o imaginário nacional, como fizeram os regimes fascistas europeus.

O mesmo discurso aparece nas tentativas de proibir cirurgias de afirmação de gênero, no retorno de leis antiaborto e na censura a obras de arte, filmes e livros que tratam da diferença.
É uma política da pureza — e, como toda política de pureza, começa com censura e termina em violência.

 

6. O império do ressentimento

Graham chama atenção para a psicologia do movimento.
O trumpismo se alimenta do ressentimento branco, de uma nostalgia tóxica por um país que nunca existiu — uma América homogênea, cristã e masculina.
E para manter essa fantasia viva, é preciso criar inimigos constantes.
O inimigo é o negro que protesta, o imigrante que trabalha, a mulher que pensa, o professor que ensina, o cientista que prova.
O inimigo é, enfim, qualquer um que desafie o mito da perfeição americana.

Essa política do ressentimento é o combustível do autoritarismo contemporâneo — e não há fronteira que a contenha.
Ela atravessa oceanos e chega até nós, alimentando discursos semelhantes no Brasil, na Europa e em toda a periferia do mundo.

 

7. Conclusão: o projeto como espelho do nosso tempo

Ao terminar O Projeto, senti um misto de lucidez e medo.
Lucidez por compreender o alcance global dessa estratégia de destruição democrática.
Medo porque percebi que não se trata de um fenômeno americano, mas de um padrão histórico: o fascismo reinventado pela tecnologia e pelo marketing político.

David A. Graham não nos oferece consolo, mas um alerta: a democracia morre quando o cidadão normaliza o absurdo.
O que começa com insultos e censura termina com exclusão, perseguição, aumento das desigualdades sociais e mortes.
E o que parece um projeto político é, na verdade, um projeto de desumanização.

Hoje, quando vejo o controle sobre as palavras, os corpos e o pensamento, percebo que o “projeto” não é sobre o poder — é sobre o domínio.
E que resistir a ele é um dever moral e civilizatório.

 

Leituras complementares:

  • O Projeto — David A. Graham
  • Como as Democracias Morrem — Steven Levitsky e Daniel Ziblatt
  • O Fascismo Eterno — Umberto Eco
  • Fascismo: Um Alerta — Madeleine Albright
  • A Mente Capturada — Czesław Miłosz
  • A Sociedade do Espetáculo — Guy Debord
  • O Homem e o Sagrado — Roger Caillois

 

Porque, no fim, a lição mais dura do livro é essa:
quando um governo controla a verdade, ele não precisa mais controlar as armas — a guerra já está vencida.

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