Diálogos entre poesia, psicanálise e antropologia

 

Escrevo estas linhas como quem atravessa um território sem fronteiras definidas. Sempre que me aproximo da poesia, sinto que não estou apenas diante de palavras que descrevem algo, mas de uma fala que me atravessa, que revela o que eu nem sabia que estava em mim. E é justamente nesse ponto que encontro a psicanálise: esse lugar de escuta, de descida às camadas subterrâneas do desejo, ao que escapa da linguagem mas insiste em se manifestar. Já a antropologia me surge como uma ponte: ao invés de olhar apenas para dentro, ela me obriga a olhar para o outro, para a cultura, para as formas simbólicas que organizam a vida coletiva.

Percebo que esses três campos — poesia, psicanálise e antropologia — não estão isolados. Eles se cruzam naquilo que chamaria de escuta do humano. O poeta, ao escrever, não descreve apenas a si mesmo, mas traduz afetos universais em imagens singulares. O psicanalista, ao interpretar, lê no sintoma uma poesia involuntária, feita de metáforas e deslocamentos. O antropólogo, ao registrar mitos, rituais e gestos, se depara com narrativas que são, em si, poemas da existência de um povo.

Na minha trajetória pessoal, foi na poesia que encontrei a primeira forma de análise: escrever versos na adolescência era lidar com a dor, a solidão, os primeiros amores e perdas. Mais tarde, na psicanálise, descobri que o inconsciente fala exatamente assim: em versos truncados, em imagens obscuras, em metáforas inesperadas. Já a antropologia me ensinou que esse inconsciente não é apenas individual, mas atravessado por símbolos coletivos, por cosmovisões inteiras que dão corpo ao que chamamos de cultura.

Quando leio os povos originários brasileiros, por exemplo, percebo como seus mitos dialogam diretamente com a psicanálise e a poesia: a onça que se apaixona por uma mulher, a árvore que guarda memórias dos ancestrais, o rio que chora pelos mortos. São imagens poéticas, mas também narrativas que organizam a vida social e que falam das pulsões mais íntimas. Freud teria chamado de retorno do recalcado; Lévi-Strauss chamaria de estrutura do mito; para mim, são formas poéticas de resistir ao esquecimento.

No consultório (real ou imaginado), vejo pacientes cujas falas são versos sem métrica. Um silêncio pode ser tão eloquente quanto uma estrofe. Um sintoma pode ser lido como uma metáfora que pede interpretação. A análise, nesse sentido, é um exercício de antropologia íntima: mergulhar num universo simbólico estrangeiro — o inconsciente do outro — e tentar traduzir seus ritos, suas narrativas e seus fantasmas.

E então volto à poesia, porque só ela suporta essa densidade. A ciência quer explicação. A política exige decisão. Mas a poesia, a psicanálise e a antropologia sabem conviver com a ambiguidade, com o não dito, com a contradição. São três modos de dizer o indizível.

Sinto que meu desafio — e talvez o desafio do nosso tempo — é não separar esses campos. Preciso da poesia para suportar a dor que a psicanálise revela. Preciso da antropologia para entender que meu inconsciente não é só meu, mas feito de histórias, símbolos e estruturas coletivas. Preciso da psicanálise para dar corpo ao que a poesia me faz sentir e ao que a antropologia me faz enxergar.

O mundo, afinal, é feito de palavras, silêncios, símbolos e gestos. E se aprendi algo nesses diálogos é que compreender o humano exige mais do que conceitos: exige escuta, imaginação e coragem de habitar os lugares onde razão e sonho se confundem.

 

Indicações de leitura para aprofundar esses diálogos:

  • Sigmund FreudA interpretação dos sonhos (psicanálise como leitura poética do inconsciente).
  • Claude Lévi-StraussO cru e o cozido (mito como linguagem estruturante).
  • Octavio PazO arco e a lira (reflexões sobre poesia como forma de conhecimento).
  • Geertz, CliffordA interpretação das culturas (antropologia como texto e metáfora).
  • Manoel de BarrosMemórias inventadas (poesia como escuta do insignificante e do recalcado).

 

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