A terra tudo come: um ritual dançado no coração de Fortaleza

 

Hoje, no palco do Centro Cultural Banco do Nordeste Fortaleza, o dançarino e performer Jade Pereira entregou ao público uma experiência que não se esgota na palavra “espetáculo”. A terra tudo come é, antes de tudo, um ritual. Um atravessamento que convoca o corpo sertanejo, o povo “caboclo” que sai do interior para a capital, e que traz consigo memórias, dores, resistências e ancestralidades que não podem ser apagadas.

A travessia ritual

Jade não dança apenas: ele conta. Cada gesto de sua performance se confunde com uma narrativa oral herdada, como se o corpo fosse arquivo e voz, voz que retorna às histórias familiares transmitidas no quintal, na beira do rio, nas cozinhas do sertão. A dança se faz contação dançada, onde o ritmo não é só movimento, mas eco das pisadas que o povo sertanejo inscreveu no chão do semiárido.

Afroindígena: retomada pela memória

A performance toca fundo nas marcas afroindígenas da nossa formação cultural. Ao deslocar essas raízes para o palco urbano de Fortaleza, Jade realiza um gesto político: reconectar a cidade — tantas vezes hostil à sua própria história — com os saberes de matriz ancestral. A terra, que tudo devora, também tudo devolve: memórias soterradas, identidades apagadas, modos de vida invisibilizados.

Corpo como território

O corpo do artista é território. Ele encarna a passagem do interior à capital, a migração sertaneja que sempre carregou em si tanto sobrevivência quanto violência. No gesto de dançar, Jade devolve dignidade ao caboclo que foi visto como resto, como sobra, como excesso. Sua dança se ergue como reivindicação de pertencimento.

O público

O público presente não apenas assistiu: foi convocado. O silêncio reverente, os olhares suspensos, a respiração coletiva que se prendia e se soltava com cada virada de corpo, mostravam que estávamos diante de algo maior que uma encenação — era uma oferta ritual, um chamado à ancestralidade compartilhada.

 

Reflexão final

Saí do CCBNB Fortaleza com a sensação de que A terra tudo come é mais que arte: é memória insurgente. Num momento em que tantas narrativas oficiais tentam pasteurizar o que somos, ver um artista como Jade Pereira dançar a travessia de seu povo é também participar de um ato político de resistência.

 

 Sugestões de leitura para aprofundar a experiência:

  • Eduardo Viveiros de Castro – A inconstância da alma selvagem
  • Beatriz Nascimento – O negro e o imaginário urbano
  • Leda Maria Martins – A cena em sombras: performance, memória e ancestralidade
  • Antônio Bispo dos Santos (Nego Bispo) – Colonização, quilombos: modos e significados

 

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