O teatro da artificialidade: minha experiência com “O Segundo Ato”, de Quentin Dupieux

 

O “segundo Ato”, filme do provocador francês Quentin Dupieux, não é um filme fácil — nem quer ser. É um espelho quebrado onde cada pedaço reflete, distorce e ridiculariza nossa obsessão por performance, aparência e controle narrativo.

Assistir a um filme de Dupieux é sempre um mergulho no absurdo — mas nesse, senti que ele resolveu brincar com o próprio cinema, com o teatro da vida e com a nossa sede insaciável por verdades imediatas. O filme começa como uma comédia romântica banal, com clichês propositalmente exagerados. Mas logo percebemos que os personagens estão atuando dentro de um filme dentro do filme, o que abre espaço para reflexões metalinguísticas que me lembraram Godard em seu período mais irônico, e também Kaufman em Adaptação, com uma camada existencial a mais: ninguém ali sabe se está realmente sentindo ou apenas representando.

Um teatro de máscaras

Dupieux não faz críticas brandas. Ele esculacha com o politicamente correto esvaziado, com a lacração automática, com o discurso raso de redes sociais e também com a burrice travestida de sinceridade. E o faz de modo inteligente: não toma partido fácil. Cada personagem é um arquétipo desajeitado — o homem que acha que tudo virou “mimimi”, a atriz que exige representatividade sem refletir sobre o texto, o cineasta que se diz progressista mas se perde na vaidade.

A certa altura, me peguei pensando se aquele incômodo que senti era pela crítica que Dupieux fazia... ou pela forma desconcertante com que ele me incluía no alvo. Talvez todos nós sejamos personagens vazios buscando um “segundo ato” que nunca vem.

Atuação e linguagem como provocação

O elenco — com destaque para Léa Seydoux, Vincent Lindon e Louis Garrel — entrega atuações que oscilam entre o caricatural e o introspectivo. Eles parecem rir de si mesmos o tempo inteiro, e é essa consciência que torna tudo mais interessante. A linguagem é afiada, com diálogos que se sabotam, se contradizem, se anulam. Nada permanece fixo. E isso, embora desconfortável, é profundamente libertador.

A câmera de Dupieux permanece neutra, quase indiferente. Como se dissesse: “vocês que se virem com esse mundo quebrado.” E a trilha sonora (sempre minimalista) apenas pontua o descompasso entre forma e conteúdo.

 

O segundo ato como conceito

No teatro clássico, o segundo ato é o da transformação, do conflito se aprofundando, do ponto de virada. Mas aqui, o “segundo ato” parece nunca chegar. É como se estivéssemos presos em um primeiro ato eterno, onde as promessas de mudança se dissolvem em discursos decorados, em ensaios que nunca viram ação.

Dupieux nos força a perguntar: há mesmo um segundo ato para o mundo? Para a arte? Para nós, como indivíduos? Ou estamos repetindo falas em um palco sem direção, esperando aplausos de um público inexistente?

Minha impressão final

“O Segundo Ato” me desconcertou. E isso é raro. Me vi ali, entre a ironia e o cansaço, rindo e me perguntando por que estava rindo. É um filme que exige — não de forma pedante, mas sagaz. Ele nos força a pensar sobre como a vida contemporânea virou um ensaio permanente, onde todos opinam, todos performam, mas poucos escutam.

Quentin Dupieux me lembrou que, às vezes, a arte mais política é aquela que nos desarma pela dúvida, e não pela certeza.
E que talvez o segundo ato — o verdadeiro, profundo, transformador — só chegue quando formos capazes de deixar o script cair.

E talvez, só talvez, já tenhamos passado do tempo de improvisar.

 

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