Quando o riso fere: o caso Leo Lins e a banalização da crueldade como entretenimento Um olhar pessoal, psicanalítico e sociológico

 

Há dias venho tentando organizar o que senti ao assistir ao vídeo de Leo Lins fazendo piada com a doença de Preta Gil — que, como todos sabem, está em tratamento contra um câncer. Eu, que sempre defendi o humor como ferramenta de crítica, liberdade e provocação, me peguei em silêncio, constrangido. Mas era mais que isso: era repulsa.

Não foi apenas falta de empatia. Foi violência travestida de piada, encenada com o sadismo de quem sabe exatamente onde atingir, e mais ainda: de quem sabe que será aplaudido por isso.

Leo Lins não faz humor. Ele lucra com a humilhação alheia, escolhendo sempre alvos vulneráveis: pessoas negras, com deficiência, em tratamento de doenças, mulheres, nordestinos, povos indígenas. E a plateia, por vezes ensandecida, aplaude.

O que isso diz sobre nós?

O riso como gozo perverso

Do ponto de vista da psicanálise, poderíamos dizer que há algo de gozo perverso nesse tipo de espetáculo. Lacan dizia que o gozo (jouissance) se dá muitas vezes contra o próprio sujeito — e no caso do público, é como se ríssemos não porque algo é engraçado, mas porque nos sentimos autorizados a odiar sem culpa.

O palco se torna o lugar do recalque suspenso. Ali, tudo se pode — zombar de quem está doente, ridicularizar minorias, converter dor em escárnio. E isso é vendido como “liberdade de expressão”, como se rir de alguém em sofrimento fosse um direito inalienável.

Mas a liberdade de expressão, ao contrário do que alegam os defensores desse tipo de “humor”, não é o direito de ferir impunemente. Há uma diferença entre provocar o poder e se tornar o braço cômico da opressão.

Redes sociais, afeto e a indústria do ódio

O mais assustador, talvez, seja ver milhares de pessoas compartilhando, curtindo, defendendo. É como se vivêssemos um colapso afetivo: a incapacidade de reconhecer a dor do outro como legítima.

A sociologia nos ajuda a entender isso. Em tempos de individualismo exacerbado, neoliberalismo afetivo e competição desenfreada, a empatia parece fraqueza. A dor do outro é piada. E quem a denuncia, “vitimismo”.

Essa lógica é potencializada pelas redes sociais, onde algoritmos premiam o sensacionalismo, a polêmica e a brutalidade. Leo Lins, como tantos outros, sabe disso. E age como um empreendedor da escrotidão: quanto mais violento, mais engajamento.

O caso de Preta Gil: quando o abismo se escancara

Preta Gil não é apenas uma artista querida. É uma mulher negra, com um histórico de enfrentamento ao racismo, à gordofobia, ao machismo. Fazer piada com seu tratamento contra o câncer não é aleatório. É um ataque a tudo o que ela representa.

E é também um lembrete do quanto a linguagem pode matar simbolicamente. Em um momento em que ela luta pela vida, há quem veja sua dor como palco.

Isso não é humor. É covardia com microfone.

A quem serve esse riso?

O que me dói mais é ver que há um público fiel para esse tipo de conteúdo. Pessoas que se identificam com esse discurso porque, no fundo, também querem uma desculpa para destilar seu desprezo pelo outro. E isso diz muito sobre a falência do nosso tecido social.

Como sociedade, precisamos nos perguntar:

  • Que tipo de riso estamos aplaudindo?
  • Por que nos parece mais fácil rir da dor do outro do que acolhê-la?
  • Qual o preço psíquico e social de uma cultura que se nutre da humilhação?

 

E quanto às leis? A urgência de enfrentamento jurídico ao discurso de ódio

É fundamental reconhecermos que a legislação brasileira atual ainda é tímida e imprecisa no tratamento de discursos de ódio veiculados sob a roupagem do humor. A liberdade de expressão, embora assegurada pela Constituição, não é — e nunca foi — absoluta. Ela encontra seus limites no respeito aos direitos humanos, à dignidade da pessoa e à proibição de incitação ao ódio ou à violência.

No entanto, casos como os de Leo Lins evidenciam brechas legais que permitem que esses ataques às minorias sejam enquadrados como “opiniões” ou “piadas”, escapando das penalidades previstas em leis como o Marco Civil da Internet ou a Lei de Crimes Raciais.

Precisamos urgentemente de reformas que:

  1. Tipifiquem com mais clareza o discurso de ódio travestido de humor, considerando contexto, reincidência e os impactos sociais;
  2. Aumentem as penas para quem lucra sistematicamente com o ataque a grupos historicamente vulnerabilizados — como pessoas negras, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência, LGBTQIA+, doentes e periféricos;
  3. Responsabilizem também as plataformas digitais que promovem, monetizam e amplificam esse tipo de conteúdo sem moderação efetiva;
  4. E, sobretudo, considerem como agravante o fato de a fala pública ser realizada em ambientes com grande audiência e poder de influência social, como shows, podcasts e redes sociais.

Esse debate não é sobre censura. É sobre limites éticos e legais num país democrático. Se não colocarmos um freio legal e simbólico, continuaremos assistindo ao fortalecimento de figuras que normalizam a desumanização — tudo em nome do entretenimento.

 

Conclusão: não basta se indignar — é preciso recusar

Escrevo esse texto com um incômodo que não se dissolve. Mas que também me move. Porque recusar esse tipo de “humor” é, hoje, um gesto ético, político e existencial.

Não, não é censura. É civilidade. É cuidado.
É entender que a arte — inclusive o humor — pode e deve ser livre, mas nunca à custa da dignidade do outro.

A liberdade não é inimiga da empatia.
O riso não precisa ser uma arma.

E se for, que miremos para cima — nunca para quem já está no chão.

 

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