A paz do cemitério: críticas ao plano Trump-Netanyahu para Gaza

 

Li com perplexidade a reportagem, publicada no Jornal O POVO de hoje, que anuncia Donald Trump e Benjamin Netanyahu como artífices de um novo “plano de paz” para Gaza. Digo perplexidade porque, ao me debruçar sobre os termos apresentados, não vejo paz: vejo apenas a velha lógica da imposição militar travestida de diplomacia. O vocabulário é sedutor — “força de estabilização internacional”, “comitê de transição”, “libertação de reféns” — mas, ao fundo, o som que ecoa é o mesmo: o da guerra justificada como remédio definitivo.

Sinto-me invadido por uma sensação de déjà-vu. Quantas vezes já não ouvimos fórmulas parecidas, prometendo o fim da violência na Palestina? No entanto, a proposta segue ignorando o elemento central: o direito de autodeterminação do povo palestino. Quando Netanyahu declara que Gaza “nunca mais representará uma ameaça para Israel”, ele não fala de convivência ou reconhecimento; fala de subjugação, de aniquilação da política do outro. E Trump, posicionado como árbitro supostamente imparcial, não passa de aliado histórico de Israel, pronto a oferecer o “apoio total” dos Estados Unidos caso Hamas não aceite os termos. Isso não é mediação — é pressão.

A ideia de um “comitê de transição” liderado por Trump e figuras como Tony Blair beira a caricatura histórica. Que legitimidade têm essas lideranças, todas estrangeiras e alinhadas ao Ocidente, para conduzir um território cuja realidade cotidiana desconhecem? Pior ainda: a Autoridade Palestina é reduzida a um papel secundário, condicionado a “mudanças radicais”. Como esperar legitimidade em um acordo que desconsidera justamente os atores que deveriam estar no centro da negociação?

O texto da reportagem ainda destaca que alguns países árabes receberam a proposta com bons olhos. Mas eu me pergunto: até que ponto isso representa de fato apoio popular e não apenas a diplomacia de regimes autoritários interessados em agradar Washington? Em contrapartida, grupos como a Jihad Islâmica já a identificaram como “receita para agressão”. Essa divisão revela o caráter ambíguo do plano: mais uma tentativa de congelar a questão palestina sem encarar suas raízes históricas.

O dado que mais me assombra é o número: mais de 66 mil mortos após a ofensiva israelense. Como falar em “paz” sobre ruínas fumegantes, sem oferecer justiça às vítimas, sem reparar a devastação? O que se oferece, no fundo, é uma paz do cemitério, onde o silêncio não nasce da convivência, mas do extermínio.

Não consigo me desligar da indignação que esse tipo de notícia me provoca. Paz não pode ser desenhada apenas em gabinetes diplomáticos, sem a escuta das vozes palestinas, sem reconhecer que não há simetria entre um Estado altamente armado e um território sitiado. A chamada “transição” só será legítima quando for fruto de diálogo real e quando reconhecer o direito de Gaza e da Palestina existirem como povo, não como apêndice controlado por Israel e tutelado por potências estrangeiras.

 

 Indicações de leitura para aprofundar o debate:

  • Edward Said, A Questão da Palestina (1979) — análise seminal sobre o apagamento político palestino.
  • Ilan Pappé, A limpeza étnica da Palestina (2006) — um olhar crítico sobre as raízes históricas da ocupação.
  • Rashid Khalidi, The Hundred Years’ War on Palestine (2020) — que expõe a continuidade da luta palestina.
  • Judith Butler, Parting Ways: Jewishness and the Critique of Zionism (2012) — reflexão filosófica sobre ética, identidade e colonização.

 

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