Entre devoção, culpa e satisfação vicária: minhas leituras de Melanie Klein
A obra de
Melanie Klein sempre me atravessou não como um manual técnico, mas como um
campo vivo, onde minhas próprias ambivalências ganham forma. Ao mergulhar em
seus textos, encontrei um mapa das forças subterrâneas que movem nossa devoção
a causas, a insistência da culpa e aquela estranha satisfação que sentimos ao
viver pelo outro, como se fosse possível reparar o mundo por procuração.
Quando
penso na devoção a causas, percebo como Klein nos alerta para a raiz
pulsional desse movimento. Não é apenas altruísmo, é também elaboração da
agressividade. A devoção surge como um gesto de reparação: ao me entregar a uma
causa — seja ela política, religiosa ou pessoal —, busco reparar danos
internos, projetados no mundo externo. É como se o movimento de militância
fosse também uma forma de costurar objetos internos despedaçados. Confesso que
muitas vezes me percebo nesse lugar, devoto não apenas ao “outro”, mas a um
ideal que protege minhas próprias partes frágeis.
A culpa,
em Klein, é inevitável. Está no cerne da posição depressiva, quando o sujeito
reconhece que o objeto amado é o mesmo que odiou, atacou e destruiu em sua
fantasia. Ao ler sobre isso, senti um desconforto: quantas vezes minha
dedicação a uma causa não foi movida menos por um desejo puro de transformação
e mais por uma tentativa de aliviar a dor da culpa? A militância, nesses
momentos, se torna campo ambivalente: libertadora e aprisionadora, criativa e
persecutória.
E é aqui
que aparece a noção de satisfação vicária. Ao viver pelo outro, ao me
sacrificar ou dedicar-me inteiramente a uma causa, sinto uma gratificação
paradoxal. É como se, por meio da reparação, eu resgatasse algo de mim mesmo.
Klein mostra como esse processo pode ser tanto genuíno — um impulso criativo e
generoso — quanto uma prisão masoquista, onde a satisfação vem mais do
sofrimento e da dívida interminável do que da liberdade. Olhando para trás,
reconheço em minha própria vida esses momentos: quando achei que estava
salvando o mundo, na verdade tentava salvar pedaços meus, e quando aliviava
minha culpa através da entrega, experimentava uma satisfação que era ao mesmo
tempo doação e fuga.
O que me
fascina em Klein é justamente essa ausência de moralismo. Ela não condena nem
santifica essas dinâmicas. Mostra, sim, como nelas pulsa a complexidade do
humano: o amor atravessado pela agressividade, a reparação nascida da
destruição, a devoção tingida pela culpa. Ao ler suas obras, percebo que minha
relação com as causas não é apenas política, mas profundamente psíquica. E que
a verdadeira transformação talvez esteja em reconhecer esses movimentos
internos, para não ficar prisioneiro deles.
Escrevo
esse artigo como um exercício de sinceridade: reconhecer que minha devoção
nunca é pura, que minha culpa não desaparece, e que minha satisfação vicária
carrega tanto criação quanto repetição. Talvez a riqueza da psicanálise
kleiniana esteja justamente em abrir esse espaço de ambiguidade — onde não
precisamos escolher entre idealizar ou demonizar nossas entregas, mas sim
habitá-las com consciência.
Indicações de leitura
- Melanie Klein – Inveja e
Gratidão (1957), especialmente os textos sobre posição depressiva.
- Melanie Klein – Amor,
Culpa e Reparação (1937), fundamental para compreender a articulação
entre agressividade, culpa e criatividade.
- Hanna Segal – Introdução
à Obra de Melanie Klein (1964), que ajuda a iluminar a dimensão
política e cultural dessas ideias.
- R. D. Hinshelwood – Dicionário
do Pensamento Kleiniano (1991), útil para explorar termos como
“reparação” e “posição depressiva” em profundidade.
Vinhetas clínicas ficcionais
1. A
devota da ONG
Carla, 29 anos, chegou à análise exausta. Trabalhava em uma ONG de apoio a
mulheres vítimas de violência e passava quase todas as noites em reuniões,
campanhas, atendimentos emergenciais. Contava com orgulho de sua devoção à
causa, mas logo surgia a exaustão e a raiva: “Se eu paro um dia, me sinto
culpada, como se fosse eu a culpada pela dor delas”. Nas entrelinhas, emergia a
fantasia de que, ao salvar as mulheres da ONG, poderia reparar a mãe, que
sofrera violência em casa e que ela, criança, “não conseguiu salvar”. Sua
devoção à causa era também reparação de um objeto interno ferido.
2. O
militante culpado
Rafael, 35 anos, militante político desde a adolescência, repetia na análise:
“Eu tenho que estar em todas as lutas, não posso faltar a um ato, se não vou
estar traindo o coletivo”. Mas sua fala vinha sempre carregada de culpa, como
se a ausência em uma assembleia fosse equivalente a destruir o projeto inteiro.
Aos poucos, foi possível ver que a culpa não era só política: vinha de uma
fantasia de destruição do pai, que ele criticava e combatia com fúria na
adolescência. Cada militância era, inconscientemente, uma tentativa de reparar
esse objeto interno danificado.
3. A
satisfação vicária
Lígia, 42 anos, relatava um padrão em seus relacionamentos: sempre se dedicava
integralmente ao parceiro, muitas vezes anulando seus próprios desejos. “Eu
sinto prazer em viver pelo outro, em reparar as falhas dele, em ser
necessária.” Havia uma satisfação real, vicária, em cuidar, mas que se
misturava a ressentimento e esvaziamento. Sua fantasia era de que, ao viver
pelo outro, ela poderia reparar um bebê interno, imaginário, que “tinha sido
danificado por suas próprias mãos”. No processo analítico, começou a reconhecer
esse padrão como mistura de reparação genuína e masoquismo inconsciente.
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