A TRAVESSIA DA NOSTALGIA
Ao abrir Nostalgia,
de Mircea Cărtărescu, tive a sensação de mergulhar em um território
híbrido, em que a literatura não se contenta em narrar, mas se expande como
sonho, memória e delírio. Não é um romance linear, tampouco um livro de contos
comuns. É como entrar em um labirinto de espelhos, em que cada história reflete
pedaços de outras, e todas juntas refletem algo de mim mesmo.
Logo nas
primeiras páginas, senti a atmosfera densa, carregada de imagens oníricas, que
me lembraram os momentos em que a infância se mistura ao pesadelo. Cărtărescu
escreve como quem convoca fantasmas da memória coletiva e íntima, criando cenas
em que realidade e imaginação deixam de ser opostas. Em vários trechos, senti
aquela vertigem em que não se sabe se estamos acordados ou dentro de um sonho.
O conto “O
Ruletista”, por exemplo, me deixou atônito: um homem que aposta sua vida
repetidas vezes em um jogo mortal, até que sua própria existência se torne
espetáculo. Ao lê-lo, pensei na obsessão humana pelo limite, no desejo de
desafiar a morte como se ela fosse apenas mais uma carta na mesa. Já em “Os
Mendigos”, vi uma Bucareste subterrânea, escondida, que parecia pulsar como
um organismo vivo, e tive a impressão de que o autor falava de qualquer cidade,
inclusive da minha — aquilo que não queremos ver, mas que nos habita.
O fio da
nostalgia, para mim, atravessa o livro como um sentimento ambíguo: não é só
saudade, é também dor, estranhamento e até uma espécie de prazer estético em
revisitar o que se perdeu. Em cada história, vi pedaços da minha própria
infância, lembranças de ruas, de rostos e de medos que nunca soube nomear. A
nostalgia que Cărtărescu convoca não é tranquila nem doce; é uma nostalgia
inquieta, perturbadora, que insiste em nos lembrar que o passado não passa.
Ao fechar
o livro, percebi que estava mais silencioso por dentro. Como se tivesse
atravessado não apenas uma obra literária, mas uma experiência. A nostalgia,
entendi, não é apenas uma emoção, mas uma forma de filosofia: um modo de olhar
para trás não para se aprisionar, mas para reconhecer que somos feitos de
memórias, e que delas nascem também nossos sonhos.
Leituras complementares
- Marcel Proust – Em busca
do tempo perdido: a nostalgia como motor da memória literária.
- Walter Benjamin – Infância
berlinense por volta de 1900: fragmentos de memória que dialogam com a
mesma atmosfera onírica.
- Andrei Tarkovski – Esculpir
o tempo:
sobre a memória e o tempo no cinema, ressoando com o tom do livro de
Cărtărescu.
- David Le Breton – Experiências
do corpo:
para pensar o corpo como lugar da memória e do sonho.
Fechamento
Minha
leitura de Nostalgia foi como atravessar um espelho turvo: ao mesmo
tempo em que encontrei as histórias de outros, encontrei também as minhas.
Cărtărescu me fez compreender que a nostalgia é uma força criadora, capaz de
transformar a lembrança em ficção e a vida em poesia. E, ao mesmo tempo, deixou
em mim a pergunta: até que ponto nossas memórias são reais, e até que ponto são
apenas sonhos que escolhemos acreditar?
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