VERGONHA E A POLÍTICA DO AFETO
Falar de vergonha
é, para mim, falar de um território íntimo, um chão instável onde se confundem
corpo, memória e linguagem. A vergonha me atravessa como um afeto ambíguo: ela
é tanto um sinal de pertencimento — quando me mostra que não correspondi às
expectativas do outro — quanto um corte profundo, que me expulsa do espaço
social, como se meu corpo não tivesse mais lugar ali. Cresci aprendendo que a
vergonha devia ser escondida, abafada, mas descobri na vida adulta que ela
também pode ser uma chave: se não a escondo, se a trago à luz, ela pode se
tornar política, relacional, até mesmo libertadora.
Percebo
que a política do afeto começa justamente nesse ponto em que a vergonha
deixa de ser um peso silencioso e se transforma em um campo de encontro. Quando
ouso dizer “eu sinto vergonha”, abro espaço para que outros digam: “eu também”.
Essa partilha cria uma comunidade frágil e potente, que rompe o isolamento. Não
é à toa que movimentos sociais — do feminismo às lutas LGBTQIA+ — têm
trabalhado a vergonha como material coletivo: a vergonha de existir fora da
norma, a vergonha do corpo não enquadrado, a vergonha de amar diferente. Essa
vergonha, quando assumida, vira resistência.
Há dias
em que sinto a vergonha como uma ferida narcísica, algo que me reduz. Mas
também há dias em que ela me oferece uma possibilidade de escuta: a vergonha me
lembra de que não sou onipotente, de que preciso do outro. Ao acolhê-la,
percebo que a política do afeto não é sobre eliminar a vulnerabilidade, mas
sobre reconhecê-la como comum. A vergonha deixa de ser só um espelho do
fracasso e passa a ser uma brecha por onde entra a solidariedade.
Indicações de Leitura
- “Vergonha”, de Salman Rushdie – um
romance que mostra como a vergonha pode moldar histórias pessoais e
nacionais.
- “Vergonha”, de Annie Ernaux – a
escritora francesa narra como a vergonha atravessou sua infância e
juventude.
- “A Coragem de Ser
Imperfeito”, de
Brené Brown – reflexão sobre vulnerabilidade, coragem e pertencimento.
- “O Mal-estar na Civilização”, de Sigmund Freud –
clássico que ajuda a pensar como afetos como culpa e vergonha estruturam a
vida social.
- “Por uma Política do Afeto”, de Vladimir Safatle –
ensaio que discute como os afetos podem reorganizar a vida política.
Indicações de Filmes e Séries
- “Vergonha” (Shame, de Steve
McQueen, 2011) –
retrata um homem consumido pelo vazio e pela vergonha de seus desejos.
- “Moonlight: Sob a Luz do
Luar” (2016) –
mostra a vergonha, o desejo e a busca por afeto em uma jornada de
autodescoberta.
- “Vergonha” (série espanhola,
2017–2020) –
comédia que trabalha os constrangimentos cotidianos e o peso social da
vergonha.
- “Euphoria” (série, 2019–) – mergulha nas
vulnerabilidades e vergonhas de uma geração atravessada por drogas, amores
e redes sociais.
- “Lady Bird” (2017) – explora a vergonha
adolescente como um rito de passagem em busca de identidade e afeto.
Fechamento
Escrevo
sobre vergonha não para exorcizá-la, mas para lembrá-la como parte de mim. Se a
política do afeto tem algum sentido, ele nasce nesse espaço em que ousamos
expor nossas fragilidades, compartilhá-las, e talvez, a partir delas, construir
novas formas de estar juntos. A vergonha, paradoxalmente, pode ser um ponto de
partida para a coragem: a coragem de sermos imperfeitos, de errarmos, de nos
mostrarmos humanos.
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