A contratransferência como bússola clínica
Há dias
em que entro na sala de atendimento e sinto que algo me atravessa antes mesmo
de o paciente falar. Um incômodo, uma ternura, uma irritação sutil — sinais
que, com o tempo, aprendi a não rejeitar. São pequenos movimentos internos que
anunciam o encontro entre dois mundos psíquicos.
Hoje sei que ali, nesse território entre o outro e eu, a contratransferência
é minha bússola.
Quando
comecei a clinicar, temia essas emoções. Acreditava que o bom analista era o
neutro, o que escuta sem se deixar afetar. Mas quanto mais vivi o ofício, mais
entendi que a neutralidade absoluta é uma ilusão.
A escuta verdadeira passa pelo corpo, pela emoção, pelo inconsciente do
analista. E é justamente isso que Winnicott, Bion e outros nos ensinam: o
analista sente não por fraqueza, mas porque é nesse sentir que reside o
instrumento do trabalho.
A
contratransferência, como aprendi na prática, é uma bússola que aponta para
o que o paciente não consegue dizer.
Aquilo que ele recalou, que não simbolizou, se infiltra na relação e provoca o
analista.
Se o paciente está congelado, posso me sentir entorpecido.
Se ele está tomado por ódio, posso experimentar raiva ou impotência.
Se ele foi abandonado, talvez eu me sinta tentado a resgatá-lo.
Nada disso é “erro clínico” — é material clínico.
O corpo como radar
Lembro de
um paciente que, toda vez que falava da infância, me fazia sentir uma espécie
de sonolência. No início, achava que era cansaço. Depois percebi que aquele
torpor era o mesmo apagamento que ele vivera na infância — um ambiente sem
vibração, sem vitalidade, sem presença.
Meu corpo estava, literalmente, reproduzindo a atmosfera psíquica dele.
Quando pude nomear isso, a sessão mudou: o que era apenas sensação passou a ser
pensamento.
A bússola apontava o norte: “você me faz sentir como você se sentia”.
Essa
experiência me ensinou que a contratransferência é o terreno onde a teoria
ganha carne.
Ela é o ponto onde o inconsciente do paciente e o do analista se tocam, e algo
que estava mudo ganha voz — ainda que primeiro como afeto, depois como palavra.
Entre o sentir e o agir
Há,
claro, um risco: o de agir a contratransferência antes de compreendê-la.
Todos nós, analistas, corremos esse perigo.
A diferença está em reconhecer o afeto, conter o impulso e usar o sentimento
como dado clínico.
Não é reagir, é metabolizar.
Como dizia Bion, o analista precisa funcionar como um “aparelho para pensar
emoções” — receber o indizível, suportar o caos e devolvê-lo como sentido.
Na
prática, isso exige humildade e autoconhecimento.
Quantas vezes o que sentimos não é do paciente, mas nosso?
A contratransferência é bússola, mas não é mapa pronto.
Ela aponta, mas quem interpreta o rumo é o analista, a partir de sua própria
história e do vínculo estabelecido.
A relação como espelho vivo
A
contratransferência me faz lembrar que a clínica não é um monólogo, mas um
encontro entre dois inconscientes.
O paciente não fala apenas com palavras — ele fala com seus silêncios, seus
gestos, seus afetos.
E o analista responde, muitas vezes, sem perceber.
A tarefa é transformar esse diálogo invisível em elaboração.
Há dias
em que saio do consultório mais tocado do que gostaria.
Mas percebo que esse toque é também o que mantém viva a possibilidade de
compreensão.
O que seria da clínica sem o afeto?
O que seria da escuta se ela não vibrasse dentro de nós?
A bússola e o caminho
Hoje,
quando sinto algo intenso numa sessão — seja desconforto, ternura, raiva,
desejo de salvar ou de fugir — tento respirar fundo e perguntar a mim mesmo: “o
que esse afeto está me dizendo sobre o mundo interno do outro?”
A contratransferência é isso: um farol no meio da névoa.
Ela não nos livra da confusão, mas nos orienta dentro dela.
Ser
analista é aprender a se perder junto com o paciente, confiando que o encontro
afetivo aponta a direção da cura.
É saber que o que nos afeta também nos guia.
A contratransferência, afinal, é o ponto onde o cuidado deixa de ser técnica e
se torna relação viva — o instante em que o humano se reconhece no humano.
Leituras para aprofundar
- Donald Winnicott – O
ambiente e os processos de maturação
(Sobre o papel da presença emocional do analista como base do setting.) - Wilfred Bion – Aprender
com a experiência
(A transformação do afeto bruto em pensamento.) - Heimann, Paula – “Sobre
contratransferência” (1950)
(Texto fundador sobre a contratransferência como instrumento clínico.) - Thomas Ogden – A matriz
analítica
(Sobre o campo intersubjetivo e a escuta do inconsciente compartilhado.) - Christopher Bollas – A
sombra do objeto
(Reflexões sobre o inconsciente do analista como espaço de ressonância.)
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