Descer para compreender: o que aprendi lendo A Descida, de Jesmyn Ward

 

Ler A Descida foi, para mim, mais do que acompanhar uma história — foi como entrar num mundo que sangra e ainda assim pulsa beleza. Jesmyn Ward escreve como quem invoca espíritos: sua prosa é densa, lírica, cortante. Eu me vi descendo com ela — descendo às entranhas da dor, da pobreza, do racismo, mas também às profundezas da coragem humana.

O livro, ambientado no Sul dos Estados Unidos, fala de uma mulher negra que perde quase tudo, mas insiste em caminhar. A cada página, a autora nos conduz a um território emocional que, de tão real, parece arder na pele: o luto, o desamparo, o peso de um sistema que nega futuro a quem já nasceu com o corpo marcado pela desigualdade.
E, no entanto, A Descida não é um livro sobre derrota — é sobre resistência.

Ward faz da dor um caminho de retorno à vida. Há uma força ancestral na forma como ela narra o sofrimento: uma consciência de que quem desce, às vezes, desce para reencontrar o chão onde a esperança foi enterrada.

 

O Sul que também é o nosso Norte

Enquanto lia, pensei muito no Brasil — e especialmente no Nordeste.
O Mississipi de Jesmyn Ward, com suas casas pobres, seu calor opressivo, suas mulheres fortes e exaustas, tem um eco poderoso nas periferias de Fortaleza, nas ruas de Caucaia, nas comunidades do sertão onde tantas mães criam filhos sozinhas.
Ward escreve sobre a herança da escravidão nos EUA, mas poderia estar falando também das marcas do nosso racismo estrutural, do abandono das famílias negras e pobres, da violência que se repete geração após geração.

E há algo mais: em A Descida, o amor é o que impede a ruína completa. É o amor de mãe, de irmã, de comunidade. Mesmo ferido, mesmo precário, esse amor mantém viva a possibilidade de recompor-se.
Quantas mulheres brasileiras não vivem esse mesmo gesto silencioso de resistência?

 

Descer é também mergulhar

Há uma cena no livro (sem spoilers) em que a protagonista parece caminhar em círculos dentro da própria perda. Essa imagem me acompanhou por dias.
Ward nos mostra que “descer” não é cair — é aprofundar-se.
A descida é um mergulho naquilo que a sociedade tenta apagar: o sofrimento negro, a desigualdade, a maternidade solitária, a espiritualidade marginalizada.

Senti que Jesmyn Ward escreve de dentro de um transe — uma linguagem que vem do corpo, da terra, do silêncio dos mortos que ainda pedem voz.
E talvez seja isso que a faz tão necessária: ela não fala sobre os esquecidos, ela fala desde eles.
A escrita é rito, é cura, é forma de reaver dignidade.

 

O que fica depois da leitura

Fechei o livro com o coração pesado e, ao mesmo tempo, mais lúcido.
A Descida me lembrou que, às vezes, é preciso ir ao fundo para se reerguer.
Vivemos num tempo em que todos querem ascender — na carreira, na imagem, na rede social —, mas quase ninguém quer descer. Descer ao inconsciente, à memória, à ferida coletiva.
Ward me ensinou que descer não é perder-se — é reencontrar o que a superfície não sustenta mais.

Em tempos de pressa e desatenção, sua escrita é um convite à escuta do que foi silenciado.
E, talvez, seja essa a lição mais profunda de A Descida: não há redenção sem luto, nem futuro sem memória.

 

Leituras que dialogam

  • Toni Morrison – Amada (a dor e a ancestralidade como caminhos de libertação)
  • Conceição Evaristo – Olhos d’água (a memória das mulheres negras brasileiras em luta e ternura)
  • Grada Kilomba – Memórias da plantação (a ferida colonial e a busca de uma fala própria)
  • Carolina Maria de Jesus – Quarto de despejo (a pobreza e a dignidade como forças de sobrevivência)
  • Bell Hooks – Vivendo de amor (o amor como ato político e resistência cotidiana)

 

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