Educação interrompida: o espelho quebrado do Ceará

 

Ler os novos dados do IBGE sobre a educação no Ceará me deixou com um nó na garganta.
Mais da metade dos cearenses com mais de 25 anos não concluiu o ensino básico.
Mais da metade — essa frase sozinha já diz tudo. Ela carrega, silenciosa, a história de uma multidão que teve de escolher entre estudar e sobreviver.

Como cearense não consigo ler esses números como meras estatísticas. Cada porcentagem me parece um rosto conhecido: a colega que largou os estudos pra cuidar dos irmãos, o vizinho que começou a trabalhar ainda adolescente, o jovem que não viu mais sentido na escola.
Por trás de cada dado há uma vida interrompida — uma história que o Estado não sustentou até o fim.

 

Quando a economia cala a escola

O professor Eneas Arrais Neto, da UFC, está certo quando diz que esses índices refletem mais a economia do que a educação.
Entre 2014 e 2022, o país viveu recessão, desemprego, cortes e desesperança.
Nos lares pobres, cada braço passou a ser necessário para compor a renda, e o tempo de estudar virou luxo.
A escola, que deveria ser abrigo, tornou-se peso.
A frase é dura, mas verdadeira: a pobreza não deixa tempo para o futuro.

No Ceará, 29,3% dos estudantes param no ensino fundamental, e 11,6% sequer chegam a se alfabetizar plenamente.
Isso significa que milhares de pessoas vivem à margem da leitura do mundo — incapazes de escrever um bilhete simples ou compreender um contrato de trabalho.
Não é apenas um problema educacional: é um problema de cidadania, de democracia, de dignidade.

 

A escola pública que resiste

Há, porém, um paradoxo interessante: o próprio IBGE mostra que a escola pública cearense é, hoje, mais procurada e mais eficiente que a rede privada em boa parte do Estado.
Como  cidadão, vejo isso como um feito coletivo — resultado de políticas educacionais consistentes, da dedicação de professores, diretores e gestores que fizeram da escola um espaço de resistência.

Mesmo assim, a estrutura ainda é frágil.
As salas de aula do ensino médio têm 36,5 alunos em média — a segunda maior taxa do Brasil.
E o que esperar de um professor que precisa dividir atenção, tempo e escuta entre quase quarenta vozes?
Educar não é repetir conteúdos: é acompanhar trajetórias, e isso exige tempo, espaço e vínculo.

 

Analfabetismo e desigualdade: o velho mapa do abandono

O analfabetismo ainda é uma ferida aberta.
No Ceará, 11,8% dos adultos com mais de 15 anos não sabem ler nem escrever.
O dobro da média nacional.
A taxa é puxada pelo interior, onde faltam infraestrutura, professores fixos e oportunidades.
É doloroso pensar que, em pleno 2025, ainda haja brasileiros excluídos da palavra — o instrumento mais básico de liberdade.

A alfabetização é o alicerce de tudo.
Sem ela, o cidadão fica à mercê da exploração: assina sem saber, trabalha sem direito, vota sem consciência plena.
Um povo que não lê é um povo facilmente manipulado.
E talvez por isso a negligência com a educação nunca tenha sido apenas descuido — é também projeto político.

 

O que precisa mudar

Para quebrar esse ciclo de exclusão, não basta ampliar escolas.
É preciso mudar a lógica do tempo e do cuidado social.

  1. Expandir o programa Pé-de-Meia e outros incentivos à permanência escolar, garantindo que jovens pobres não precisem escolher entre estudar e trabalhar.
  2. Reduzir a jornada de trabalho de 6x1 para 4x3, permitindo que famílias tenham tempo para viver, acompanhar os filhos e investir no próprio aprendizado.
  3. Valorizar os professores, com salários justos, condições de trabalho e tempo para formação continuada.
  4. Implantar políticas de alfabetização de adultos, integradas à cultura local — rodas de leitura, escolas noturnas, bibliotecas comunitárias.
  5. Ampliar espaços de convivência e aprendizagem livre, como centros de cultura, Biodança e terapia comunitária, onde o corpo e a mente se reencontrem com o prazer de aprender.
  6. Garantir acesso digital público, mas aliado a uma educação crítica, que ensine os jovens a pensar o mundo, e não apenas a consumir conteúdos.

 

Educar é devolver futuro

A vida escolar média do cearense é de 11,7 anos — o maior índice do Nordeste, e ainda assim insuficiente.
Isso mostra que há uma vontade de permanecer, uma confiança na escola, mesmo em meio às adversidades.
O que falta não é interesse do povo, é sustentação do Estado.

A educação precisa voltar a ser o centro das políticas públicas.
Sem ela, nenhum investimento em segurança, saúde ou economia se sustenta.
Com ela, o Ceará pode continuar sendo referência, não apenas em números, mas em dignidade, consciência e autonomia.

 

Epílogo: o que aprendi olhando esses números

Quando penso que mais da metade dos meus conterrâneos não concluiu o ensino básico, sinto que o problema não está neles — está em nós, como sociedade.
Abandonar uma criança, direta ou indiretamente, é o primeiro ato de violência simbólica que cometemos.
E esse abandono se repete em adultos desamparados, empregos precários, sonhos encolhidos.

Mas há algo de esperança também: o dado que mostra 90% das crianças cearenses em idade escolar dentro da escola.
A chama ainda está acesa.
Cabe a nós impedir que ela se apague de novo.

Educar é mais do que ensinar — é cuidar do que ainda pode florescer.
E se o Ceará quiser realmente mudar seu destino, terá de apostar, com coragem, naquilo que sempre salvou este povo: a força da aprendizagem, da cultura e da solidariedade.

 

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