O silêncio que repete e a repetição que silencia

 

Há algo de profundamente humano — e ao mesmo tempo trágico — na forma como repetimos. Eu vejo isso em mim, nos outros, nos pacientes, nos vínculos. A repetição parece, muitas vezes, um modo de permanecer vivo dentro do que não conseguimos elaborar.
Ler Freud, depois Ferenczi e Winnicott, e depois observar a vida — nas ruas, nas sessões, nas conversas — me fez perceber que repetir é uma tentativa falha de lembrar sem sofrer.

Quando não conseguimos transformar a dor em palavra, o corpo fala por nós.
Quando não conseguimos simbolizar o trauma, o gesto retorna — igual, insistente, previsível.
E é nesse ponto que a repetição se torna fuga: não é apenas reviver o passado, é tentativa de não senti-lo novamente.

Já o silêncio — esse outro modo de repetição — é o eco do que não pôde ser dito.
É a defesa mais sutil e mais dolorosa.
No silêncio, o sujeito tenta manter o controle, tenta evitar o colapso, tenta não tocar o buraco que ainda sangra. Mas, paradoxalmente, o silêncio também é fala: ele repete o trauma, repete o abandono, repete o não-escutado.

 

A clínica do eco

Lembro de Marcos, 27 anos, que chegava sempre atrasado. Pedia desculpas, ria, dizia que “se perdeu no caminho”. Depois de alguns meses, percebi que o atraso não era um acaso. Era uma forma de presença controlada: ele precisava me fazer esperar — como esperou a vida inteira por um pai que nunca chegou.
O atraso era uma lembrança em ato, uma repetição do desencontro.
Mas também era um pedido: “Você vai continuar aqui quando eu chegar tarde demais?”

Demorou meses até que pudéssemos nomear isso juntos.
Enquanto não havia palavra, havia apenas o gesto — repetido, fiel, como uma oração sem som.

 

O silêncio de Ana

Ana, 42 anos, vivia em silêncio.
Entrava na sala, sentava-se e ficava olhando o chão.
Durante meses, quase não falava. E eu, ansioso, me via tentado a preencher o vazio — até perceber que o silêncio dela era uma repetição do ambiente que nunca a escutou.
Sua infância fora povoada por gritos, humilhações e invasões.
Agora, o silêncio era sua forma de sobreviver à palavra que feriu.

Um dia, sem aviso, ela disse:
“Falar dói.”
E essa frase, pequena e simples, foi o início da elaboração.
O silêncio começava a ceder espaço à fala — o trauma se deslocava da ação para o símbolo.

Winnicott diria que só se fala quando se sente o chão.
Ana começava a sentir o chão — e, com ele, o direito de existir para além da repetição.

 

A dor de voltar ao mesmo lugar

A repetição é também a recusa da morte do passado.
É o movimento que mantém o trauma vivo, porque o sujeito ainda acredita que, desta vez, o desfecho poderá ser outro.
Por isso, repetimos amores que nos ferem, trabalhos que nos adoecem, vínculos que nos anulam — não por ignorância, mas por esperança.
Há sempre um desejo de reparar, de finalmente “fazer dar certo”.
Mas enquanto o afeto não encontra espaço de elaboração, a repetição não cura: aprisiona.

Freud chamou isso de compulsão à repetição. Winnicott talvez dissesse que é a tentativa de recuperar um gesto interrompido.
É o brincar que se perdeu, o gesto espontâneo que foi esmagado.
E enquanto não há espaço de holding — um ambiente que suporte, acolha e dê sentido — o sujeito gira em torno do mesmo ponto, confundindo movimento com mudança.

 

Entre o eco e a palavra

A cura, então, começa no instante em que a repetição se torna lembrança e o silêncio se transforma em fala possível.
Quando o que antes era ato se converte em palavra, o tempo volta a fluir.
O sujeito deixa de repetir o trauma e passa a narrá-lo — e narrar é sempre criar uma saída.

Mas para isso é preciso um outro que escute.
Sem escuta, a dor repete.
Com escuta, ela se transforma.

 

Cuidar é interromper o ciclo

Hoje, quando vejo alguém repetindo o mesmo erro, a mesma relação, o mesmo vazio, tento lembrar: a repetição é um pedido de sentido.
O silêncio, por sua vez, é o último reduto da dor.
Cabe à clínica — e à vida — oferecer espaço para que esse silêncio encontre voz e para que a repetição encontre outro destino.

O analista, o amigo, o professor, o terapeuta — quem quer que seja o “outro presente” — tem a função de sustentar o tempo da elaboração, até que o sujeito descubra que pode viver sem girar em torno da mesma falta.

Talvez o grande milagre do humano esteja aí: transformar o eco em palavra, e o gesto repetido em criação.
Porque, no fundo, toda cura é uma forma de invenção — uma forma nova de dizer o que antes só se podia repetir.

 

Sugestões de leitura e reflexão

  • Sigmund Freud – Recordar, repetir e elaborar
    (Texto fundamental sobre a compulsão à repetição e o trabalho de elaboração.)
  • Donald Winnicott – O brincar e a realidade
    (Sobre o gesto criativo e o ambiente que sustenta o self verdadeiro.)
  • Christopher Bollas – As forças do destino
    (Reflexão sobre padrões repetitivos inconscientes e a busca de sentido.)
  • Wilfred Bion – Aprender com a experiência
    (Sobre transformar experiências emocionais em pensamento.)
  • Clarice Lispector – A paixão segundo G.H.
    (Um mergulho literário na experiência do silêncio e da repetição como travessia.)

 

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