O vazio e o gesto: o que aprendi com Deprivação e Delinquência, de Winnicott

 

Ler Deprivação e Delinquência, de Donald Winnicott, foi como atravessar uma fronteira invisível entre o abandono e o desejo de existir. É um livro que toca lugares desconfortáveis da alma — a infância ferida, a falta de amor, o grito não ouvido. E o que mais me impressionou foi perceber como Winnicott consegue enxergar esperança onde o mundo só vê ameaça.

Ele fala de crianças e adolescentes que a sociedade chama de “problemáticos”, “perigosos”, “perdidos”. Mas, para ele, a delinquência não é um defeito moral — é um pedido de ajuda.
O roubo, a destruição, o ato agressivo são, na verdade, tentativas desesperadas de chamar o mundo de volta: “olhem pra mim, eu existo, eu ainda posso ser amado”.
A delinquência é, nas palavras de Winnicott, o gesto de quem não foi suficientemente sustentado.

 

Vinheta 1 – O menino que roubava relógios

Lembro de um menino, a quem chamarei de Lucas, levado ao atendimento por furtar relógios de colegas na escola. O olhar dele misturava desafio e medo. Quando perguntei por que fazia isso, respondeu:
Eu gosto de ver o tempo nas mãos dos outros.

Demorei a entender. Com o tempo, percebi que Lucas não falava de objetos, mas de pertencimento. O relógio era o símbolo do tempo que lhe foi negado — o tempo de ser cuidado, de ser criança, de existir sem pressa.
A mãe, exausta e sozinha, trabalhava em dois empregos. O pai havia desaparecido.
O “furto” era o modo como ele tentava tomar para si o tempo de um outro mundo: o mundo dos que ainda tinham alguém olhando por eles.

Winnicott diria que esse gesto, por mais destrutivo que pareça, ainda contém esperança.
O menino que rouba quer que alguém o veja, que alguém o pare — não pela punição, mas pela presença.
E foi exatamente isso que transformou nosso vínculo: o dia em que Lucas pôde, pela primeira vez, me mostrar o relógio sem medo de ser repreendido, e eu apenas sorri e disse:
Agora você tem tempo.

 

Vinheta 2 – A menina que quebrava janelas

Outro caso que nunca esqueci foi o de Camila, 13 anos, internada num abrigo por destruir as janelas da casa onde morava com a avó.
Quando perguntei o motivo, respondeu com frieza:
Eu só queria ver o céu.

Camila perdera a mãe muito cedo e vivia sob vigilância constante — tudo trancado, tudo controlado.
A agressividade dela era o esforço para abrir um espaço de respiração, romper o confinamento emocional que a sufocava.
Winnicott fala muito sobre isso: a agressão como um gesto de vida, uma tentativa de testar se o mundo resiste à nossa força.
No caso de Camila, cada vidro quebrado era uma pergunta silenciosa: “O mundo ainda me aguenta?”

Durante os atendimentos, começamos a pintar. Um dia ela desenhou uma janela aberta com um pássaro saindo. Perguntei o que significava, e ela disse:
Agora o céu é meu, não da parede.

Foi nesse instante que percebi: a delinquência dela se transformava em criação.
O gesto destrutivo, acolhido sem punição, se tornava reparador.

 

Vinheta 3 – O adolescente que não falava

Rogério, 16 anos, havia sido apreendido por agressão. No início, não dizia uma palavra.
Sentava-se, olhava o chão, esperava a hora passar.
Durante semanas, mantivemos esse silêncio — eu respeitando o tempo dele, tentando ser aquele “ambiente confiável” de que Winnicott tanto fala.
Um dia, ele apareceu com uma caixa de fósforos no bolso e me mostrou.
Eu só gosto de ver o fogo subir.

Naquele instante, entendi que o fogo era o símbolo do seu vazio — algo que o fazia sentir, mesmo que por segundos.
O desafio era transformar o fogo que destrói em calor que aquece.
Passei a levar velas.
Acendíamos uma no início de cada encontro.
Ele observava, e um dia disse, baixinho:
Parece que o fogo fica calmo quando alguém tá junto.

Era isso.
A delinquência, em Winnicott, é uma tentativa primitiva de relação.
Quando alguém permanece ao lado, sem julgar, a violência perde a função.
O fogo encontra abrigo.

 

Entre o crime e o cuidado

Essas experiências me fizeram compreender o que Winnicott tenta nos dizer: nenhuma criança é delinquente por essência.
Toda violência é um pedido de vínculo não atendido.
O gesto destrutivo é, paradoxalmente, o último sinal de esperança.

A sociedade, no entanto, costuma reagir com punição e exclusão — exatamente o que repete a falha original.
Winnicott insiste: o que cura não é a lei, é o ambiente que acolhe, a presença firme e empática que permite à criança sentir que o mundo não vai desabar novamente.
Cuidar é oferecer continuidade onde houve ruptura.

Fechei Deprivação e Delinquência com um nó na garganta e uma certeza: ninguém se torna violento sozinho.
A agressividade é a cicatriz de um amor que não pôde nascer.
E toda reparação começa quando alguém se dispõe a sustentar, sem pressa, o gesto do outro — até que ele volte a ser gesto de vida.

 

Caminhos possíveis para reparar o cuidado

  1. Ampliar os serviços de atenção psicossocial para crianças e adolescentes (CAPSij), com foco em escuta e vínculo, não em contenção.
  2. Implantar práticas comunitárias de Terapia Comunitária Integrativa e Biodança, que ajudam na reconstrução da confiança e do pertencimento.
  3. Criar espaços de convivência em escolas e bairros, onde arte, esporte e afetividade sejam canais de expressão e elaboração da agressividade.
  4. Acompanhar as famílias em sofrimento psíquico, com suporte psicológico e orientação parental.
  5. Reformular o sistema socioeducativo, priorizando o cuidado afetivo e o acompanhamento terapêutico contínuo.
  6. Políticas de prevenção à deprivação afetiva, investindo em creches, cultura e saúde mental desde a primeira infância.

 

Sugestões de leitura complementar

  • Donald W. Winnicott – O ambiente e os processos de maturação
  • Melanie Klein – Amor, culpa e reparação
  • Françoise Dolto – A causa das crianças
  • Vera Iaconelli – O fim do amor: por que os pais estão exaustos
  • Christopher Bollas – O sujeito evocativo

 

Winnicott me ensinou que curar é sustentar o outro até que ele possa sustentar a si mesmo.
E que, às vezes, o gesto mais revolucionário é simplesmente ficar — não fugir do caos, não punir o erro, não desistir do que ainda pode florescer.
Porque toda delinquência, quando acolhida, traz dentro dela a semente de uma reparação possível.

 

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