Os anos novos: o tempo em que ainda somos
Assistir
à série “Os anos novos”, da MUBI, foi como folhear um álbum de
lembranças que ainda não terminei de viver. Há algo profundamente humano na
forma como a série trata o tempo: não o tempo das datas, mas o tempo da alma —
aquele que se mede em perdas, silêncios e reinvenções.
O que
mais me tocou foi a delicadeza com que os episódios capturam o gesto mínimo:
uma respiração demorada, uma luz de fim de tarde, o olhar de quem tenta
compreender o que restou de si.
“Os anos novos” não é uma série para quem busca enredo linear ou ritmo
acelerado. Ela pede entrega. Pede que o espectador desacelere, que
aceite o tempo da escuta, o tempo do vazio, o tempo da espera.
O tempo que o capitalismo não quer que a gente
sinta
Enquanto
assistia, pensei muito em como vivemos hoje — sempre correndo, sempre
produzindo, sempre fingindo que o passado foi superado. A série me lembrou de
algo essencial: a modernidade transformou o tempo em mercadoria, e nós,
em consumidores de instantes.
“Os anos novos” resiste a isso.
Cada episódio é quase um manifesto contra o esquecimento e a pressa.
Ele nos devolve o direito de sentir o presente com profundidade, de
olhar o outro com ternura, de se reconhecer no espelho sem medo do envelhecer.
Há uma
sabedoria triste ali — uma percepção de que o que chamamos de “novo” não é o
futuro, mas o modo como revisitamos o que fomos.
Entre o cinema e a poesia
A
estética da série é um capítulo à parte.
A câmera deambula como quem procura algo que se perdeu — uma juventude, uma
crença, um amor.
Os planos longos, os silêncios, a luz natural: tudo parece dialogar com um
cinema do sensível, onde o gesto vale mais que a palavra.
Lembrei de Chantal Akerman, de Kiarostami, de Lucrecia Martel
— artistas que entendem que o tempo também é matéria narrativa.
Em certos
momentos, senti como se a série fosse uma carta — uma carta escrita por quem
viveu muito e agora fala com delicadeza ao que ainda está por vir.
O que fica
Ao final,
senti que “Os anos novos” é menos uma série e mais um exercício de escuta
existencial.
Ela me fez pensar nos meus próprios ciclos, nas pessoas que ficaram pelo
caminho, nos sonhos que deixei adormecer.
Há algo de profundamente terapêutico em se permitir esse mergulho — não o da
nostalgia barata, mas o da memória como reconciliação.
O novo,
no fundo, não está no que vem, mas no modo como escolhemos olhar o que já
foi.
E talvez seja isso que a série ensina, com sua doçura lenta e dolorida: os
anos novos só existem quando aprendemos a estar inteiros no agora.
Sugestões de leitura e diálogo
- Henri Bergson – Matéria e
Memória
(sobre o tempo vivido e a consciência do devir)
- Gilles Deleuze – A
Imagem-Tempo
(para compreender o cinema que pensa o tempo pela duração)
- Byung-Chul Han – O aroma
do tempo (a
crise da temporalidade na modernidade acelerada)
- Virginia Woolf – As Ondas (a passagem da vida como
fluxo contínuo de sensações e lembranças)
- Clarice Lispector – Água
Viva (a
linguagem como tentativa de capturar o instante que escapa)
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